Brasil: em nome da ciência, STF e imprensa contrariam tudo o que a OMS dizOMS é contra obrigatoriedade e passaporte de vacinas, entre outras razões, porque não funciona na situação atual.

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Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo

Ministro Ricardo Lewandowski durante sessão da segunda turma do STF.| Foto: Nelson Jr./SCO/SSTF

Outro dia, tive um dos momentos mais legais da minha vida em redes sociais. Diversos cientistas, de várias áreas diferentes, concluíam que já haviam esgotado os esforços em passar informações sobre COVID e vacinas. Agora, o problema estava nas dúvidas que eles não sabiam que a população tinha e em formas eficientes de ouvir as pessoas e endereçar o que elas querem saber. Mas o STF e a imprensa não estão nem aí para esse povo.

Eu já tive desespero e vontade de chorar ao ver inteligentinho que ouviu o galo cantar e não sabe onde defendendo como verdade científica obrigatoriedade de vacinação para criança e passaporte de vacina. Depois eu tive raiva. Agora eu só concluo que Darwin estava errado. A gente mora num país em que a elite intelectual contraria o que a OMS diz sobre vida e morte mas o país ainda não acabou. Vejam que coisa, Deus deve ser brasileiro mesmo.

Se você me acompanha, já está cansado de ouvir isso, mas repito para os que não me acompanham. Uma das minhas melhores experiências profissionais foi ser Consultora Internacional em Comunicação para o Desenvolvimento do Unicef Angola na campanha que erradicou a pólio no país, em 2011. Passei a gravidez lá. Nossa tarefa era atingir a cobertura vacinal mínima necessária para a erradicação, o que repetidas vezes não se conseguia devido a grupos muito hesitantes e resistentes.

Não estou falando de tia do zap, estou falando de gente que dava tiro na gente com medo do que a vacina pudesse fazer com seus filhos. Naquele ano, colegas meus foram explodidos no Paquistão tentando vacinar contra a pólio. Não foi por terrorista não, foi por gente com medo. Nem nesses casos a Organização Mundial de Saúde recomenda que seja instituída vacinação obrigatória. E por quê? Porque não dá certo, simples assim.

Eu li com todo carinho o voto do ministro Ricardo Lewandowski, meu querido e inesquecível professor, na ADPF 754, sobre a vacinação obrigatória de crianças contra a COVID. A parte jurídica nem tenho capacidade para avaliar, sempre um espetáculo. Mas o negacionismo científico eu tenho como avaliar e está presente da primeira à última página. De onde tiraram que obrigar a vacinar aumenta a cobertura vacinal? Da imaginação. Segundo os estudos desde a década de 1950, não funciona assim.

Sinceramente, eu já perdi completamente a paciência com colegas jornalistas que ficam agora defendendo obrigatoriedade de vacinação. São os mesmos negacionistas científicos que, 10 anos atrás, defendiam direito de vegano de Santa Cecília não vacinar filho. Agora juram que é ciência o que não é. Há 10 anos também juravam que era ciência o que não era, que jamais chegaríamos a níveis críticos de cobertura vacinal em doenças erradicadas. Vai falar isso agora para quem perdeu filho morto por sarampo.

Eu só consegui implementar uma política eficiente de comunicação para convencer pessoas resistentes a vacinar porque admiti que era ignorante no tema, não tive preguiça de estudar e ouvi as pessoas com carinho e atenção. Vacinação obrigatória é um recurso extremo para situações limite. O que é uma situação limite? Quando toda a população que tem hesitação vacinal já foi diretamente acessada pelas autoridades de saúde e não se chegou ao mínimo necessário para a cobertura que garanta imunidade.

Aqui no Brasil tem fila de gente em posto para tomar vacina. Onde tem vacina as pessoas vão. Qual é a consequência prática de dizer que é obrigatório? Segundo a OMS, despertar desconfiança sobre a vacina onde não tinha. Parabéns à Rede e ao Judiciário pela excelência na prática brasileira de ser bom de iniciativa e ruim de terminativa. Nós já passamos da fase de reação para a fase de estabilização da pandemia. Medidas radicais nem funcionam mais pela exaustão psicológica.

Fiquei só com algumas dúvidas. A decisão do ministro Lewandowski cita o também querido ministro Barroso: “Vale lembrar, a propósito, que esta Suprema Corte assentou que decisões administrativas relacionadas à proteção à vida, à saúde e ao meio ambiente devem observar standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas”. E daí ele decide contrariar só a OMS e a Anvisa no tema obrigatoriedade de vacina? Não entendi. A decisão cita mais G1 e Folha de São Paulo do que cientista.

A OMS e a Anvisa são contra obrigatoriedade da vacina em primeiro lugar por razões práticas. Tumultua qualquer campanha de vacinação ficar provocando os reticentes antes de acessar com calma toda a população para esclarecimentos de dúvidas. Além disso, há considerações de ética médica. Já o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU é contra a obrigatoriedade da vacina da COVID por violação de Direitos Humanos mesmo. E isso eu vou deixar a própria Michelle Bachellet contar para vocês:

“Injusto, imoral e contraproducente” é o título do vídeo que compara duas decisões concomitantes que prejudicam o enfrentamento da pandemia. Vamos lembrar que o vírus circula mundialmente, então é necessário o combate mundial. Ao mesmo tempo que não temos vacina disponível para algumas regiões, outras regiões têm vacina sobrando e, em vez de dar para quem quer, pretendem primeiro obrigar quem não quer.

E o tal do passaporte da vacina? Existe uma discussão científica, mas não é dessa simplicidade Dollynho que a gente vê na imprensa. Entre os jornalistas, funciona mais ou menos assim. Se a Janaína Paschoal é contra o passaporte da vacina, então eu sou a favor. E daí dane-se a OMS, que é contra o passaporte da vacina até mesmo para viagens internacionais. Sério? Sério, pode ler aqui. Por que a OMS é contra? O que o passaporte de vacina atesta? Pensa bem.

“NÃO exija comprovação de vacinação contra COVID-19 para viagens internacionais como o único caminho ou condição que permite viagens internacionais, dado o acesso global limitado e a distribuição desigual de vacinas COVID-19. Os Estados Partes devem considerar uma abordagem baseada em risco para facilitar as viagens internacionais, suspendendo ou modificando medidas, como testes e/ou requisitos de quarentena, quando apropriado, de acordo com as orientações da OMS”, diz a última diretiva da OMS.

Ela reporta a outra, mais importante. “É posição da OMS que as autoridades nacionais e os operadores de transporte não devem introduzir requisitos de comprovação da vacinação COVID-19 para viagens internacionais como condição de partida ou entrada, uma vez que ainda existem incógnitas críticas sobre a eficácia da vacinação na redução da transmissão. Além disso, considerando que há disponibilidade limitada de vacinas, a vacinação preferencial de viajantes pode resultar em suprimentos inadequados de vacinas para populações prioritárias consideradas de alto risco de doença grave de COVID-19. A OMS também recomenda que as pessoas vacinadas não sejam isentas de cumprir outras medidas de redução de risco em viagens”, diz a diretiva internacional. Eu não me conformo que tem gente escrevendo sobre COVID sem ler isso.

O que diz a OMS sobre passaporte de vacina? Não serve para muita coisa. Sei lá, pode ter um efeito placebo, eu fico mais tranquila quando sei que o pessoal perto de mim está vacinado. Mas garante que a pessoa não vai passar COVID? Não. Quem tomou vacina precisa ser testado para saber se está ou não passando COVID? Sim, não basta ter o passaporte não. O passaporte é para dar a burocrata o que fazer? Ou trabalho para falsificador?

É negacionismo científico formular uma política pública que force equivalência entre testar negativo para COVID e apresentar prova de vacina. O teste negativo significa que aquele indivíduo não vai contaminar os demais ao redor. A vacina garante isso? Não. Garante, no máximo, que ele não vai morrer de COVID ou terá sintomas mais amenos se pegar a doença.

Pensar que o tal do passaporte vacinal não tem nada demais por ser inócuo é um erro gigantesco. Estamos submetidos a um sem número de mudanças de rotina e de regras desde o início da pandemia. Muita gente perdeu pessoas queridas, estabilidade financeira, moradia, negócios. A criação do passaporte dá a impressão falsa de que é seguro o ambiente onde ele é exigido. Chega a ser cruel insinuar isso porque não é seguro. É seguro o ambiente onde todo mundo se testou.

Eu costumo dizer que o Brasil será salvo pelo antidoping e pela matemática. Estar vacinada não significa que eu, Madeleine, tenho apenas 0,000000000001% de chance de morrer se pegar COVID. Não. Eu tenho ou 100% ou 0%, ou morro ou não. A média dos vacinados é que morre mais ou menos, eu só morro por inteiro. Tomei vacina para ter uma probabilidade maior de ser do povo do 0%. Sei que um dia entrarei para o 100%, espero que não agora. Para mim, não pegar a doença interessa demais e isso se controla com testagem em massa. Será que não tem ninguém da Rede para pedir isso no STF?

Voltemos aqui à questão que eu gosto tanto, dos Direitos Humanos. Esta semana, o direito pessoal aos nossos dados passou a fazer parte da Constituição Federal, um avanço muito significativo na era digital. Ocorre que a cabeça do debate público ainda está catando milho em máquina de escrever. Não vi ainda ser feito o cruzamento entre isso e o passaporte de vacina. O tema já é discutido na Europa desde o início da vacinação:

Aqui não estou dizendo que o passaporte vacinal é ou não é uma violação de Direitos Humanos. Quem tiver paciência de ver a hora e meia de palestra vai entender que é algo muito complexo e depende demais da forma como é feito. Estou falando de outra coisa, da qualidade das nossas discussões. Nós nem discutimos isso, que é importantíssimo. Estamos reproduzindo bate-boca de rede social.

A OMS disse publicamente que é contra vacina obrigatória e passaporte vacinal até entre países. Como o STF e a imprensa acham que ser a favor disso é ciência? Simples, seguem a Bíblia do parque de areia antialérgica da internet. Tem de falar o exato oposto de tudo o que o Bolsonaro e a Damares falaram. Mesmo no caso em que eles mentem, o oposto de uma mentira não é necessariamente a verdade. E a imprensa só cobre bate-boca de rede social, que vai parar na peça do STF e justifica obrigar a vacinar. Coitados dos cientistas sérios nessa história.

Politizar ou reduzir a tretinha de rede social a vacinação dos filhos dos outros é uma das coisas mais cruéis que eu já vi. E isso não é culpa só do STF não. Nossos políticos e a imprensa têm uma longa tradição de tratar o povo feito lixo mesmo. Desde o início da pandemia ninguém fez e ninguém exigiu um plano completo e consistente de como seria feito o combate ao COVID. Vivemos de gambiarra e orçamento secreto.

Empresto as palavras da dra. Leana Wen, especialista em Saúde Pública e colunista do Washington Post e da CNN. “Saúde pública é sobre fazer o bem maior para o maior número (de pessoas). Continuar a fechar escolas e prejudicar a economia não vai ajudar os mais vulneráveis. Nós precisamos de melhores tratamentos para os imunocomprometidos enquanto, ao mesmo tempo, reconhecemos que boa saúde não é apenas ausência de COVID”. É um debate duro e necessário, impossível de acontecer na gritaria e confusão das redes, que virou o único tema do noticiário.

Decidir vacinar ou não um filho não é simples. Não é uma vacina que está aí há 30 anos para a gente confiar de olhos fechados. A imprensa não esclarece sobre efeitos colaterais e trata como terraplanista quem pergunta. Mas eu também vi pais chorando na Inglaterra porque perderam os filhos para a COVID e queriam ter tido eles a palavra final sobre vacinar. O governo decidiu não vacinar, como vários outros.

As grandes autoridades mundiais em Saúde e Direitos Humanos concordam que tem de haver vacina disponível para todos e que não pode haver obrigatoriedade. Infelizmente, políticos no mundo todo não têm conseguido atender nem um requisito nem outro. Ouço demais falar de ser ou não experimental, o que tem diferentes significados para cientistas e o público em geral. Não é argumento. Se houvesse uma poção mágica ou reza para salvar um filho meu, eu tenho o direito de decidir se recorro a isso ou não.

Não navegamos um oceano de certezas, mas um oceano de exaustão em que as famílias merecem respeito e razoabilidade. Talvez você conheça alguém que foi ridicularizado por dúvidas sobre vacinação em crianças. Talvez isso tenha acontecido com você. Ano passado, a Organização Mundial de Saúde fez um material sucinto e bem explicado em português, espero que ajude.

Já quanto à obrigatoriedade da vacinação, divido com você algo que aprendi trabalhando no STF. Não existe na prática obrigação legal quando não há previsibilidade de punição caso a obrigação não seja cumprida. O próprio ministro Lewandowski disse que a vacinação é obrigatória, mas não pode ser forçada. Tomara que essa confusão toda não tenha interferido na sua serenidade para decidir o que fazer na pandemia.


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