Editorial
Por
Gazeta do Povo
Na cidade de Lausanne, Suíça, jovens organizaram uma manifestação pró-Ucrânia e contra a guerra nesta quinta-feira (03).| Foto: EFE
Desde que a invasão da Rússia à Ucrânia começou, cerca de 6 mil cidadãos russos foram detidos por participar de protestos em defesa do povo ucraniano e pedindo o fim da guerra. Esses atos ocorreram em 48 cidades, incluindo a própria Moscou. Manifestações semelhantes se multiplicaram de forma incontável por todo o mundo livre, revelando o que já se consolidou como efeito colateral da insana e anacrônica empreitada de Vladimir Putin: a solidariedade global pela Ucrânia.
É difícil saber se o presidente russo previu a extensão do apoio que seu alvo receberia, mas o fato é que já ficou impossível esconder que o mundo torce pelos ucranianos. O amarelo e o azul da bandeira eslava agora são cores reconhecidas e homenageadas em todos os continentes. O sentimento é justo, legítimo e o povo ucraniano o merece, não só por ser vítima da agressão que enfrenta, mas sobretudo pela bravura que demonstra, pois se levassem em conta apenas as evidências de poder bélico que cada lado pode mostrar, já teriam entregue metade do país no primeiro bombardeio. Os ucranianos conhecem bem melhor do que nós todo o estrago que o exército russo pode fazer, mas são motivados a resistir por fatores que superam a lógica puramente material.
Essa característica não é nova, mas parece que o ataque russo serviu para reforçá-la. Entre as muitas mentiras difundidas pelo Kremlin, umas das mais frágeis é a que acusa a Ucrânia atual de ser mera invenção artificial da União Soviética, desprovida de identidade nacional, insinuando que, em essência, o povo ucraniano seria russo. Trata-se de uma elaboração que não resiste a poucos minutos de pesquisa sobre a história da região.
O amarelo e o azul da bandeira eslava agora são cores reconhecidas e homenageadas em todos os continentes
A Ucrânia é um país soberano, com língua e culturas próprias, que vive em regime democrático desde 1991, instituída com base num referendo popular. O legado de sua cultura se expressa, para além do idioma, mesmo nas comunidades ucranianas espalhadas pelo mundo. No Brasil, por exemplo, ela influenciou fortemente a formação do cooperativismo na economia agrícola, por meio de imigrantes que chegaram no século XIX, principalmente no Sul.
Como bem lembrado num excelente resgate histórico feito por Diogo Schelp, a história de como o povo ucraniano buscou seus próprios caminhos para a autodeterminação, longe da influência do Kremlin, remonta a um passado ainda mais distante. É verdade que, enquanto nação, a Ucrânia já fez parte do Império Russo, mas durante sua conturbada história a região também já esteve sob domínio da Polônia e de outras nações estrangeiras. Entre 1917 e 1920, com o fim do czarismo, repúblicas autônomas foram criadas nas áreas periféricas do antigo império, e os falantes de língua ucraniana foram agrupados num mesmo Estado-nação pelos bolcheviques. Embora a definição de fronteiras tenha sido feita por razões políticas, aquele povo compartilhava de uma milenar cultura comum, o que incomodou os comunistas. O nacionalismo ucraniano foi então duramente reprimido na década seguinte, ao mesmo tempo que era reforçado pela rejeição do povo ao coletivismo forçado que ceifou a vida de 12 milhões de ucranianos pelos efeitos da fome, doloroso que ficou conhecido como Holodomor. Durante a II Guerra Mundial, nacionalistas ucranianos se dividiram entre lutar contra nazistas e soviéticos ou colaborar com ambos os lados. No final do conflito, as fronteiras do país foram ampliadas na direção oeste, unindo-se a maior parte dos ucranianos sob uma única entidade política. A maior parte da população não ucraniana dos territórios anexados foi deportada. E o país se tornou membro das Nações Unidas.
A independência plena, porém, só veio com o fim da União Soviética, em 1991. Um plebiscito foi convocado e a maioria decidiu pela criação de uma república semipresidencialista que teria sua nova constituição aprovada em 1996. De lá até aqui, o país enfrentou uma séria crise econômica na década de 90, mas estabeleceu moeda própria e iniciou uma trajetória de desenvolvimento consistente a partir dos anos 2000. O amadurecimento rumo à independência plena foi atingido com a crescente rejeição popular a políticos que se prestavam a ser fantoches de Moscou.
Disposição para o sacrifício
Essa repulsa culminou com a chamada Revolução Laranja, quando um presidente acusado de corrupção, Viktor Yanukovych, foi apeado do poder após uma controversa eleição em 2004, em meio a intensas manifestações populares. Em 2013, o mesmo Yanukovych, que conseguira retornar ao poder por meio de manobras político-econômicas envolvendo indiretamente o Kremlin, rejeitou um acordo de associação com a União Europeia, provocando uma onda de protestos ainda maiores, que levariam à sua deposição pelo parlamento, sendo substituído por uma coalizão pró-Europa que foi eleita com mais de 50% dos votos em 2014. Essa conquista popular por autonomia e distanciamento da Rússia foi o estopim para a invasão da Crimeia, precedida de manobras políticas de Putin em associação aos políticos pró-Rússia derrotados na Ucrânia. O mesmo sentimento esteve presente na vitória de Volodymyr Zelensky em 2019.
Esse consistente nacionalismo, associado ao desejo de adesão aos princípios e valores caros às democracias do Ocidente, reflete-se nas mais diversas pesquisas de opinião. Segundo dados do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, em novembro de 2013, apenas 10% dos ucranianos diziam ter uma atitude negativa em relação à Rússia. Esse percentual cresceu para 34% em maio de 2014, chegando a 42% em fevereiro desse ano.
Ao contrário do que Putin tem alegado reiteradamente, as pesquisas demonstram que foram suas próprias tentativas de interferir no país que empurraram os ucranianos para a Otan, na busca pela proteção contra um agressor que reiteradamente demonstrou desprezo – se não, ódio – pela nacionalidade ucraniana. Em maio de 2014, 31% dos ucranianos concordavam com a ideia de que o país se tornasse membro da organização militar ocidental. Em janeiro de 2021, essa proporção aumentou para 56%.
É essa história de progressiva conquista de verdadeira autonomia que agora está prestes a ser brutalmente interrompida, pois, apesar da empatia internacional, ainda não está claro se apenas as sanções econômicas aplicadas até agora serão suficientes para encerrar o que Putin começou, e os ucranianos sabem que sua heroica resistência talvez não impeça a vitória russa.
O que essa valente combatividade está escancarando ao mundo é um fato que qualquer líder dotado de senso de justiça é impelido a reconhecer: o povo ucraniano quer ser livre. Por isso, sua vontade deveria ser acatada. Seja ela de se aproximar da Otan, da União Europeia ou de manter uma relação de independência em relação aos principais esquemas de poder que disputam o controle da região. Acima das disputas de influência entre Rússia, Estados Unidos ou qualquer outra potência, os ucranianos querem ser Ucrânia.
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