Editorial
Por
Gazeta do Povo
Vladimir Putin participa de cerimônia da Igreja Ortodoxa, na Catedral da Transfiguração, em São Petesburgo, Rússia.| Foto: EFE
Em seus discursos, desde antes da invasão à Ucrânia, vem sendo notório o esforço de Vladimir Putin em se dirigir não apenas à sua plateia interna, a parcela dos russos que o apoiam, mas também para uma significativa parte da população ocidental que se sente profundamente insatisfeita com seus dirigentes ou mesmo com a sociedade na qual vivem. Em geral, trechos relevantes do que diz parecem mirar em pessoas que têm especial apreço por valores tradicionais, como uma religiosidade sólida, o reconhecimento de que a família é a célula fundamental da sociedade e a valorização de bens imateriais, como a tradição e o patriotismo.
É preciso admitir que simplesmente acusar de ingenuidade quem tem aderido às narrativas do líder russo é contraproducente. Se a intenção for a de despertar quem estaria sendo enganado, é mais justo e eficaz compreender as causas que têm gerado essa adesão, que para muitos é surpreendente.
Antes de tudo, reconheçamos que cada um daqueles elementos citados carrega em si um valor intrínseco que reflete muito do que construiu nossa civilização e do que a humanidade tem de melhor. Assim, por considerarem que os representantes de seus países no cenário internacional, ou mesmo a cultura contemporânea na qual estão imersos, falham terrivelmente por não protegerem de modo adequado tais princípios, esses cidadãos desenvolvem uma desconfiança quase automática pelo discurso oficial, especialmente quando se contrapõe a um oponente que parece cumprir melhor o papel de defensor daquilo que mais valorizam. Desse modo, quando veem políticos que frequentemente atacam o que lhes é mais sagrado, como Joe Biden, Justin Trudeau e Emmanuel Macron apontando numa direção, quase que automaticamente escolhem a outra.
Atento a esse fenômeno e ciente de que, no momento, o Ocidente carece de grandes estadistas, dotados de capacidade e carisma o suficiente para gerar união em torno de objetivos comuns, Putin parece obter êxito na aplicação da milenar tática de dividir para conquistar. A fim de atrair apoios ou ao menos dissuadir resistências, o líder russo investe pesado em narrativas que o colocam como representante de um dos lados que comumente se enfrentam em numerosos países democráticos e quase sempre são classificados como conservadores e progressistas.
Pode-se encontrar sinais dessa opção retórica em Putin já há alguns anos, mas ela se tornou mais explícita recentemente. No final do ano passado, por exemplo, ele fez um discurso inflamado em Moscou, com severas críticas ao Ocidente focadas no campo moral, incluindo a acusação de que os governos ocidentais estão ensinando mudança de gênero às crianças. Coincidentemente, as declarações foram feitas ainda no início das tensões que desaguariam na ofensiva russa deste ano.
Diante disso, convém trazer à luz a lembrança de que essa nem sempre foi a imagem que Putin quis construir para si. Há 22 anos, quando assumiu o comando da Rússia, seus primeiros passos no poder foram marcados por sucessivas aproximações com o Ocidente, apresentando um perfil populista que não diferia muito de seu hoje antípoda Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia. Até meados de 2006, a face que demonstrava para o mundo era de um cético em relação à Otan, favorável aos Estados Unidos e pivô de reformas liberais na Rússia. Temas que falassem de forma mais direta aos tradicionalistas de seu país não ganhavam destaque algum em seus discursos.
Atento a esse fenômeno e ciente de que, no momento, o Ocidente carece de grandes estadistas, dotados de capacidade e carisma o suficiente para gerar união em torno de objetivos comuns, Putin parece obter êxito na aplicação da milenar tática de dividir para conquistar
Os primeiros apelos à soberania começaram a aparecer em 2007, assim como o estremecimento com relação a países vizinhos mais inclinados à União Europeia. Mas foi só quando se viu na necessidade de se contrapor às políticas mais liberalizantes de seu sucessor, Dmitry Medvedev, que teve início a “virada conservadora” de Putin. Durante seu governo, Medvedev se aproximou da elite liberal e da classe criativa russa. Ele fez uso das redes sociais e chegou a cair nas graças da Dozhd TV, a estação de televisão russa de oposição então na moda. Quando Putin regressou ao poder, viu a necessidade de consolidar uma nova maioria, procurando compromissos mais amplos com o povo russo. Foi aí que começou a verbalizar teses claramente inspiradas nas ideias de Alexander Dugin, sobre os fundamentos espirituais da nação, defesa dos valores familiares e o ressurgimento de uma onda patriótica que levaria até à invasão da Criméia em 2014.
A partir do final de 2011, ao notar que os acenos que fazia à forte conexão do povo russo com o cristianismo ortodoxo lhe rendiam aumento de popularidade, Putin aprofundou discursos e ações nesse sentido, ganhando a amizade de autoridades da influente Igreja Ortodoxa. Foi assim que o ex-espião da KGB, órgão historicamente responsável pela perseguição a religiosos, assassinato de padres e campanhas de difamação contra a fé cristã, convertia-se em campeão do tradicionalismo, com apoio direto do clero russo.
Essa, contudo, é só metade da verdade quando analisamos a relação de Putin com o cristianismo, pois autênticas conversões tardias são comuns e poderia ser o caso do líder russo, mas há evidências gritantes que apontam em contrário. Ele parece selecionar somente determinados aspectos do conjunto de crenças, valores e atitudes que costumam ser prezados pelos fiéis, enquanto despreza ou infringe brutalmente outros princípios cruciais para a fé cristã, provavelmente por não os considerar compatíveis com seu projeto de poder.
Assim, ele escolhe concordar vigorosamente com a visão tradicional de família e com a importância da religião para a pátria, por exemplo, mas ignora imperativos de caridade óbvios no cristianismo, como o de não matar, o de ser misericordioso e o de ajudar a quem sofre. O exército russo está, a seu comando, assassinando centenas de civis inocentes, incluindo crianças, além de separar famílias, privá-las de seu lar e provocar outras formas de sofrimento que são consequência direta da invasão obstinadamente liderada por ele. Putin deu início a uma guerra absolutamente injusta, contra uma nação que não agrediu seu país. Ele sabe que é a causa de todo esse derramamento de sangue e afirma, sem hesitar, que não vai parar.
Ele parece selecionar somente determinados aspectos do conjunto de crenças, valores e atitudes que costumam ser prezados pelos fiéis, enquanto despreza ou infringe brutalmente outros princípios cruciais para a fé cristã, provavelmente por não os considerar compatíveis com seu projeto de poder
Aqueles que estão se deixando encantar pela parte do discurso de Putin que soa moralmente correta – enquanto fecham os olhos para o horror de seus atos – não percebem que estão, na verdade, concedendo que um homem notoriamente violento e desumano tome para si a função que poderia – e deveria – ser desempenhada por seus líderes ocidentais, de modo muito mais íntegro, pleno, e sem as deformações seletivas que Putin estrategicamente provoca no conjunto de princípios que diz defender. Impossível não vincular o que ocorre hoje, facilmente constatado por numerosas manifestações nas redes sociais, com o conhecidíssimo alerta bíblico sobre o perigoso e enganador fascínio provocado por “falsos profetas”.
Se o Ocidente de hoje está moralmente decaído, a solução não é abandoná-lo ou destruí-lo, mas sim resgatá-lo. Recuperar uma sociedade padecente de tantos males é, sem dúvida, mais trabalhoso, requer sacrifícios e o permanente risco de derrotas, mas é nesse processo que se forja uma geração verdadeiramente madura, resiliente e capaz de discernir a verdade da ilusão, por mais verossímil que esta seja.
Além disso, tendo no horizonte o contexto da guerra cultural contra o progressismo, que tanto preocupa os conservadores, convém a ponderação sobre as consequências de se aceitar que Putin obtenha para si o título de grande defensor mundial dos valores morais. O que vai acontecer, nos países ocidentais, se o autocrata russo for bem-sucedido em vincular sua imagem à defesa da família? É fácil prever a próxima estratégia que os inimigos dos valores familiares passarão a adotar para constranger qualquer um que se contraponha à sua agenda ideológica. Dirão que as pautas conservadoras, bem como seus defensores, são todos alinhados ao homem que mata milhares no Leste Europeu, e cuja imagem é cada vez mais comparada àquela de monstros históricos, como Hitler e Stalin. Vão satanizar a posição pró-família.
Aos cristãos, é preciso ter a coragem de admitir que defender de forma abstrata a instituição familiar, enquanto se faz vista grossa ao extermínio de famílias reais, é qualquer coisa, menos cristianismo. Constitui relegar a uma absurda insignificância a atitude que devia ser prioritária: amar ao próximo. Para esses, que colocam a fé no mais alto patamar, e prosseguem nutrindo simpatia por Putin, em detrimento de todos os cadáveres que levam sua assinatura, urge uma reflexão íntima e honesta a respeito de quem realmente estão seguindo e em quem estão depositando sua esperança.
Impossível não vincular o que ocorre hoje, facilmente constatado por numerosas manifestações nas redes sociais, com o conhecidíssimo alerta bíblico sobre o perigoso e enganador fascínio provocado por “falsos profetas”
Por fim, há ainda outro ponto desse dilema que merece análise mais profunda: o valor dado à democracia. Não raro, entre aqueles que se entusiasmam com a ascensão de um suposto novo conservadorismo mundial liderado por Putin, consta a relativização da democracia enquanto bem a ser preservado. Talvez por conta das frequentes derrotas que as pautas ligadas a valores tradicionais vêm acumulando em nações democráticas, ganha força a tentação de se tolerar regimes totalitários, contanto que garantam a manutenção de uma ordem social moralmente mais íntegra.
Esse perigoso equívoco tem raiz numa visão simplista do que é democracia, quase sempre reduzindo-a às questões eleitorais regidas por regras que colocam ou tiram determinado grupo no poder. No entanto, ela é muito mais que isso. Sem a pretensão de nos aventurar na complexa tarefa de definir a democracia em poucas linhas, é preciso reconhecer que ela está mais para uma cultura que influencia diferentes aspectos da vida. Uma “forma de ser” encontrada por alguns povos para preservar o que consideram fundamental nas relações entre as pessoas, tendo por base o fato de que a vida humana – cada vida humana, individualmente – tem uma dignidade singular, preciosíssima, a ser reconhecida, respeitada e protegida, por meio de um sofisticado sistema social desenvolvido ao longo dos séculos.
A democracia é a única forma de governo a respeitar plenamente essa dignidade e que permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo suas potencialidades. O homem é um ser tal que as principais decisões a respeito de si mesmo e de seu futuro jamais lhe podem ser impostas por coação. Nela, ninguém pode arvorar-se dono da sociedade civil, com o direito de impor o seu projeto pessoal de sociedade. A renúncia à imposição da própria opinião não significa, no entanto, que a democracia só viceja em um ambiente onde as convicções sejam fracas. Aliás, a adesão a uma convicção filosófica, religiosa ou mesmo ideológica só é verdadeira quando abraçada de forma absolutamente livre. Isso só é possível sem dirigismo estatal e isso só a democracia oferece.
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