Desconfio que basta dizer que a festa de família é para unir as pessoas que tudo degenera
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
No clássico 1984, de George Orwell, os ministérios do governo totalitário possuem nomes opostos a suas funções. Aquele que trata da guerra permanente, claro, é o da Paz. O ministério que censura e deforma os dados é, obviamente, o da Verdade. Há o da Fartura e do Amor. Bem, claro, parece a célebre piada diplomática conhecida de quase todos: em uma festa, nossos vizinhos paraguaios, sem litoral, informam a existência de um “Ministério da Marinha”. Os brasileiros questionam. Os diplomatas de Assunção devolvem: “Ora, vocês possuem um Ministério da Justiça no Brasil!”. Riram? Não? É boa, porém é quase da geração que criou a graça do pavê.
Volto aos termos contraditórios. Sabemos que uma instituição religiosa nem sempre consagra os princípios do fundador daquela expressão de fé. Separam-se significado e significante.
Vamos ampliar: poucos lugares causam tanto horror à leitura e ao conhecimento quanto uma escola. Por vezes, eu, professor, achava que todo o sistema escolar era um plano de desescolarização. Machado de Assis é genial e, quase sempre, criamos birra com o autor nas aulas sobre ele. Temas de Ensino Religioso, em escolas confessionais, costumam ser máquinas geradoras de céticos e de ateus. Já devo ter afastado muitas vocações de historiadores falando das Grandes Navegações.
Permito-me outra piada diplomática, ou quase: relações matrimoniais são constituídas para a felicidade de duas pessoas. Não me alongo em exemplos: vá que a queridíssima leitora e o diligentíssimo leitor estejam com o jornal ao lado da companheira ou companheiro e solte, agora, justamente agora, uma ruidosa gargalhada que demande explicação. Posso assegurar, após anos de estudo e de observação: sim, o casamento é para a felicidade do casal, plena e permanente, eterna e fiel.
Ministérios, igrejas, escolas e o matrimônio inclinariam a natureza humana ao contraditório? O mesmo Machado falou disso na igreja do diabo: obrigados ao mal, os humanos praticam o bem às escondidas. Seria o caso de perseguir as religiões para que surgissem cristãos da têmpera dos mártires das catacumbas? Proibir o amor para que emergissem mais Romeus e Julietas apaixonados? Interditar leituras (como na obra Fahrenheit 451) para que os alunos fizessem bibliotecas secretas clandestinas? Na busca do amor cristão, do conhecimento e da felicidade conjugal, caberia a repressão como método? Não sei, mas desconfio que basta dizer que a festa de família é para aproximar as pessoas que tudo degenera. Há esperança para nossa incoerência?