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Gazeta do Povo

Procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, durante entrevista no estúdio do jornal Gazeta do Povo

Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

A Lava Jato é uma conquista do Brasil reconhecida em todo o mundo. Em mais de cinco anos de operação, a sociedade brasileira teve acesso a um verdadeiro raio-x dos meandros da corrupção no sistema político, foram devolvidos aos cofres públicos bilhões de reais desviados durante os governos petistas, empresários e políticos corruptos foram presos e condenados. Infelizmente, apesar desse passado de conquistas, desde 2018 a Lava Jato vem sofrendo derrotas sucessivas nos planos políticos e institucional. Figuras influentes que foram condenadas têm obtido vitórias espantosas nas instâncias superiores da Justiça, não raro graças a julgamentos repletos de falhas, baseados em convenientes mudanças de jurisprudência, na morosidade do sistema de justiça criminal ou em provas obtidas de maneira fraudulenta. Em 2021, a operação foi encerrada de forma melancólica e, ao que parece, agora os corruptos partem para a desforra.

Essa é a sensação que fica diante da recente condenação de Deltan Dallagnol no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Numa decisão injusta e equivocada, o ex-coordenador da Lava Jato, foi condenado a pagar R$ 75 mil para o ex-presidente Lula devido a uma apresentação de slides feita em 2016, na qual teria ocorrido “violação da imagem e da honra”. Na ocasião, Deltan apresentou para a imprensa a justificativa da primeira denúncia contra o petista na operação, por corrupção e lavagem de dinheiro. O caso em questão era o do triplex do Guarujá (SP). No slide principal da apresentação que ficou amplamente conhecida, o nome de Lula aparecia ao centro, rodeado de termos referentes aos crimes dos quais ele estava sendo acusado ou investigado.

A defesa de Lula, que pede R$ 1 milhão de indenização, alega que, na época da denúncia do triplex, ele não era acusado do crime de organização criminosa, objeto de outra investigação que então tramitava na Justiça Federal, e que desaguaria na absolvição do petista em 2019. Esse argumento foi derrotado nas duas primeiras instâncias, mas saiu vitorioso no STJ, que desconsiderou apontamentos técnicos e a própria jurisprudência do tribunal.


Ainda que haja ressalvas provenientes de competentes juristas a respeito daquela forma de publicizar a investigação, dado o fato de que apresentações como a de Deltan não eram usuais, considerá-la ilícita é um absurdo. Além disso, é preciso enfatizar que a estratégia de comunicação usada pela Lava Jato sempre foi legítima e necessária para o engajamento da população. Não havia nenhum impedimento legal para que o Ministério Público expusesse o panorama geral sobre seu trabalho naquele momento. Na apresentação, não havia factoides. Tudo se referia a investigações efetivas e apresentá-las de forma sistemática e ampla, explicando elementos ou conceitos que poderiam ser de difícil compreensão para a imprensa, não constituía ilicitude alguma, nem afetava o curso da operação, ainda que o conteúdo fosse para além do que constaria nas acusações propriamente ditas. A linguagem usada era composta por descrições e adaptações necessárias para a melhor prestação de contas por parte de agentes públicos.

A exposição do procurador a respeito do papel de Lula nos esquemas investigados foi clara, acessível aos cidadãos e fundamentada em evidências acumuladas em mais de dois anos de trabalho. Só há e só houve “espetacularização do evento”, como alega a defesa de Lula, para quem rechaça ou rechaçava a Lava Jato como um todo, recusando-se a acreditar, de modo pertinaz, nas inúmeras revelações que a operação fez ao longo de sua atividade e preferindo crer que tudo não passava de invenção, a despeito das evidências. Para os brasileiros comuns, dotados de bom senso, não houve espetáculo algum. Na verdade, era apenas uma explicação clara do que os procuradores haviam encontrado. Algo objetivo, eficiente, mas até simples em sua forma.

Há ainda o aspecto de que o envolvimento do ex-presidente Lula, por si só, já atraía holofotes espontaneamente, afinal, tratava-se da figura política mais influente do país, o que obviamente tornava ainda mais importante o apreço à transparência por parte da Lava Jato, de modo a resguardar a própria legitimidade das investigações e torná-la, na medida do possível, imune à pressão de poderosos que se sentissem incomodados.

Essa publicização foi o que impediu – ao menos por um tempo – que sabotagens políticas ocorressem nas sombras, fazendo uso de nociva influência para prejudicar a operação. Essa também era a característica que permitia à sociedade saber das negociatas que ocorriam no submundo da estrutura estatal do Brasil, algo que não deixava de ser, de certa forma, inédito em nossa história.

No momento em que uma figura como Lula é denunciada, era impossível que o fato não tivesse grande repercussão na imprensa. Foi isso o que aconteceu e, na ocasião, mesmo que alguns nomes do mundo jurídico tenham exposto certo desconforto, não houve nenhuma reação relevante na esfera pública apontando para a ilegalidade do ato. Afinal, o caso não corria sob segredo de justiça e não havia nenhum impedimento legal para a coletiva de imprensa.

Agora, o que parece estar em curso é não só uma retaliação contra os responsáveis pela operação, mas a costura de um guarda-chuva de proteção dos poderosos, de modo que nunca mais algum grupo de procuradores tenha a “petulância” de repetir o que fez a Lava Jato. Daqui em diante, agentes públicos envolvidos em investigações de corrupção terão que avaliar bem as probabilidades de vingança por parte daqueles que hoje estão sendo presos, pois, lá na frente, em instâncias superiores, há grandes chances de os punidos serem absolvidos, independentemente da consistência das evidências.

Agora, o que parece estar em curso é não só uma retaliação contra os responsáveis pela operação, mas a costura de um guarda-chuva de proteção dos poderosos, de modo que nunca mais algum grupo de procuradores tenha a “petulância” de repetir o que fez a Lava Jato

Isso transforma o trabalho de combate ao crime numa espécie de arena reservada apenas para aqueles com disposição para o martírio, com incentivos explícitos para que não se faça nada contra quem possui recursos e poder.  Diante dessa infame caçada, quando aparecerão novamente agentes públicos dotados da coragem e do senso de missão que Deltan Dallagnol sempre teve? Quantos estarão dispostos a trocar a comodidade de uma atuação meramente burocrática por um desempenho fora do comum, motivado unicamente pelo desejo de fazer o que deve e o que o país precisa, da melhor forma possível?

Por fim, a decisão é um golpe forte não só no procurador, mas em todos os brasileiros que vibravam, até poucos anos atrás, com um país que parecia estar mudando, no qual políticos poderosos enfim eram julgados com o mesmo rigor que os cidadãos comuns. Em seu auge, a Lava Jato conquistou amplo apoio popular porque era o avanço concretizado do combate à corrupção, uma agenda pública sonhada por gerações, mas que infelizmente foi vivida por tempo curto demais.


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