Editorial
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Gazeta do Povo
“Nós somos muito poderosos. Nós somos a democracia. Nós é que somos os poderes do bem”, afirmou Luís Roberto Barroso durante evento na Universidade Harvard.| Foto: Carlos Alves Moura/SCO/STF
Que uma deputada de oposição ao governo expresse publicamente sua preocupação com a possibilidade de o atual governante conseguir a reeleição e questione como ele pode ser derrotado faz parte do jogo político. Que um membro do Poder Judiciário – pior ainda: alguém que faz parte do órgão responsável por supervisionar as eleições – se refira a esse governante (ainda que de maneira oblíqua) como “inimigo”, no entanto, é inaceitável. Mas foi justamente isso o que ocorreu durante a Brazil Conference, evento realizado na Universidade Harvard, dias atrás, e que convidou praticamente todas as forças que almejam o Planalto, com exceção do próprio governo.
A deputada Tábata Amaral (PSB-SP), em debate que fazia parte da programação do evento, afirmou, em comentário dirigido ao diretor regional da Fundação Ford, Átila Roque, que “não é óbvio que a gente já derrotou Bolsonaro” e deu como certo um aumento da violência politicamente motivada tanto em caso de vitória quanto de derrota do presidente em outubro. Depois da resposta de Roque, que compartilhou do exercício de futurologia da deputada, o ministro do STF e do TSE Luís Roberto Barroso disse que “é preciso não supervalorizar os inimigos. Nós somos muito poderosos. Nós somos a democracia. Nós é que somos os poderes do bem”. Ainda que não tenha havido menção específica a Jair Bolsonaro ou a bolsonaristas na resposta, ela é indissociável do contexto da pergunta.
Barroso compromete ainda mais a credibilidade das cortes superiores e de seus integrantes, que passam a ser vistos como agentes políticos, com lado definido, e não como detentores da postura imparcial esperada da Justiça e de todos os juízes
O próprio conteúdo da intervenção de Barroso já é questionável. Verdade seja dita, ele acerta quando diz que o STF é “muito poderoso”. A corte, em muitos aspectos, especialmente os relacionados à pandemia, se estabeleceu como uma espécie de “governo paralelo”. E todos os acontecimentos recentes envolvendo desde a destruição da Operação Lava Jato até inquéritos como os das fake news e os dos “atos antidemocráticos” deixam claro que os tribunais superiores se veem acima da Constituição, das leis, da própria jurisprudência, dos bons princípios jurídicos e até da realidade dos fatos. E justamente por isso é impossível que Barroso possa descrever a si mesmo e as cortes que integra como a incorporação da democracia. Supremo, STJ e TSE têm contribuído para o apagão da liberdade de expressão no Brasil e para a relativização de várias liberdades democráticas. Dias Toffoli já disse que o Supremo era o “editor de uma nação inteira” e exercia um “poder moderador”. Foi o próprio Barroso quem primeiro ofereceu justificativas para censurar o aplicativo Telegram no Brasil – ironicamente, em sua resposta o ministro afirmou que, em sua juventude, as grandes preocupações de sua geração incluíam “como acabar com a censura”.
Mas ainda mais grave é que um magistrado que até fevereiro deste ano presidiu a instância máxima da Justiça Eleitoral, e ainda faça parte dela, se refira a um grupo específico como “inimigos” e, ao descrever a si mesmo como os “poderes do bem”, deixe implícito que os outros seriam os “poderes do mal”. Barroso não afirmou que o real adversário eram as trapaças eleitorais (das quais as fake news são uma parte) vindas de todos os lados do espectro político, e que o trabalho do TSE era coibi-las independentemente de onde viessem; em vez disso, ele personalizou a questão, endossando o discurso da deputada que atribui todos os males a apenas um grupo.
Com isso, Barroso compromete ainda mais a credibilidade das cortes superiores e de seus integrantes, que passam a ser vistos como agentes políticos, com lado definido, e não como detentores da postura imparcial esperada da Justiça e de todos os juízes. Nega-se, assim, a boa prática jurídica segundo a qual o juiz se pronuncia apenas nos autos dos processos que julga, e atendo-se a seu conteúdo. Esta loquacidade, no entanto, não é nova; já vem de alguns anos o fenômeno que fez dos ministros do Supremo estrelas midiáticas que opinam sobre absolutamente tudo, seja por iniciativa própria, seja respondendo a questionamentos da imprensa ou como os da deputada Tábata Amaral. E, cumprindo o ditado popular, de tanto falarem seria óbvio que, mais cedo ou mais tarde, os ministros acabariam comprometendo sua independência e idoneidade, para usar dois termos presentes na Lei Orgânica da Magistratura.
Compare-se, por exemplo, a atividade opinativa frequente dos ministros do Supremo com a discrição de membros de outras cortes supremas mundo afora, como a norte-americana. E isso nada tem a ver com excesso ou falta de transparência: um tribunal não é menos transparente quando seus membros não se pronunciam sobre questões que não lhes dizem respeito, ou sobre temas e pessoas que podem vir a julgar. Essa reserva, pelo contrário, apenas reforça a autoridade moral da corte, que fica erodida quando seus integrantes enveredam pela atuação político/partidária, tanto por palavras quanto por ações.
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