Editorial
Por
Gazeta do Povo
O deputado federal Daniel Silveira foi condenado pelo STF em 20 de abril.| Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Apenas à base de muita ingenuidade seria possível acreditar que Daniel Silveira teria alguma chance de absolvição diante de um Supremo Tribunal Federal que não vê problemas em atuar ao mesmo tempo como vítima, investigador e julgador, e que se considera não tanto o guardião da Constituição, mas seu dono, a ponto de decidir quais artigos da Carta Magna e da legislação infraconstitucional valem ou não, e em que circunstâncias. Nesta quarta-feira, por exemplo, 10 dos 11 ministros decidiram derrubar o artigo 53 da Lei Maior ao condenar Silveira a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado pelos crimes de coação no curso do processo e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Ainda que o episódio já tenha ganho novos desdobramentos, com a concessão do perdão presidencial a Silveira, por meio do instituto da graça – uma espécie de “indulto individual” –, neste primeiro momento pretendemos analisar apenas o papel do Supremo, pois há muitos que não estão dando a dimensão correta à condenação de Silveira, tampouco entendendo o risco que ela comporta, seja por ignorar de boa-fé todas as nuances da discussão, seja porque o punido é alguém que está do “outro lado” da disputa política.
Uma prévia do que estaria por vir ocorreu na terça-feira, quando o relator Alexandre de Moraes não apenas negou seis recursos da defesa de Silveira, mas ainda aplicou várias multas de R$ 2 mil a seu advogado, em uma atitude que não tem outro nome a não ser cerceamento de defesa. Em mais uma das lamentáveis contradições que o Supremo tem oferecido ao Brasil, a mesma corte que inventou cerceamentos de defesa em processos da Lava Jato, a ponto de anular julgamentos que seguiram à risca o Código de Processo Penal, promove um ataque real ao direito constitucional à ampla defesa, punindo advogados por fazer seu trabalho.
Há muitos que não estão dando a dimensão correta à condenação de Silveira, tampouco entendendo o risco que ela comporta, seja por ignorar de boa-fé todas as nuances da discussão, seja porque o punido é alguém que está do “outro lado” da disputa política
Antes de tudo, é preciso deixar claro que toda a controvérsia envolvendo Silveira não é tanto sobre liberdade de expressão, mas sobre a imunidade parlamentar. Como bem sabem os leitores da Gazeta do Povo, jamais consideramos que a liberdade de expressão é absoluta; há tipos de afirmações que podem e devem ser coibidas legalmente. E todas as manifestações que levaram o Supremo a condenar Silveira estão repletas não apenas de críticas legítimas ao STF, ainda que formuladas de forma grosseira; há nelas inúmeros insultos e imputações de crimes a ministros, afirmações que justificariam, sim, uma condenação judicial por calúnia, injúria e difamação, caso Silveira não fosse um deputado federal – e aqui está o detalhe que mais importa.
Diz o caput do artigo 53 da Constituição que “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Esta afirmação, tão sucinta quanto inequívoca, define a chamada “imunidade material” dos parlamentares: uma proteção para que eles possam participar do debate público não apenas com a maior liberdade possível, mas com toda a liberdade, inclusive podendo se manifestar de formas que estariam vedadas aos demais cidadãos. Nem a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, nem os ministros que condenaram Silveira souberam explicar a contento por que, em sua opinião, as opiniões e palavras do deputado não estariam protegidas pela imunidade material, que, segundo o texto constitucional, abrange “quaisquer” manifestações, sem exceção. Em vez disso, alguns, como Luís Roberto Barroso, tentaram simplesmente deslocar o debate para os limites da liberdade de expressão, quando, no fim das contas, não era isso o que estava em jogo.
Mas por que é necessária tamanha proteção às palavras de um parlamentar? O próprio Supremo que hoje viola essa imunidade já reconheceu que ela não é um privilégio dos congressistas, mas um direito: “A garantia é inerente ao desempenho da função parlamentar, não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal”, afirmara em 2005 Celso de Mello. E há razões para tal: o debate parlamentar precisa se dar da forma mais desimpedida possível, e isso não ocorre se houver restrições legais ao que um parlamentar pode dizer. É preciso lembrar, como contexto histórico, que o AI-5 surgiu como resposta da ditadura militar a um “crime de opinião”, após a Câmara dos Deputados se recusar a cassar Márcio Moreira Alves, que havia feito um discurso crítico ao regime. A necessidade de proteger todas as palavras de um parlamentar, portanto, não era apenas uma convicção teórica, compartilhada aliás por muitas outras democracias mundo afora; vários dos constituintes de 1988 haviam tido experiência pessoal do dano causado quando essa imunidade não existe. Podemos até supor que os redatores da Carta Magna jamais poderiam ter imaginado que, mais de 30 anos depois, haveria um Daniel Silveira a dizer barbaridades; mas a escolha pela proteção total das palavras de um parlamentar não deixa de ser acertada.
E é justamente porque o debate deve girar em torno da preservação do instituto da imunidade parlamentar, e não tanto dos limites da liberdade de expressão, que também é necessário comentar a argumentação do único a votar – corretamente – pela absolvição de Silveira. O ministro Kassio Nunes Marques embasou seu voto no fato de, na sua opinião, as palavras do deputado constituírem mais bravatas que ameaças reais, ou seja, justificou a absolvição na suposta ausência de gravidade das declarações. Por mais que o ministro tenha avaliado bem a dimensão das palavras, já que é necessário muito malabarismo hermenêutico para tratar as afirmações de Silveira, mesmo as mais incisivas, como uma real ameaça ao Estado Democrático de Direito, o argumento deixa de fora o cerne da questão. Afinal, o primeiro critério a ser avaliado neste caso específico não é o que foi dito, mas quem o disse: um parlamentar, que não pode ser responsabilizado por “opiniões, palavras e votos”. Ainda que Silveira tivesse sido mais grosseiro e mais desrespeitoso do que já foi, nem assim deveria ter sido condenado – muito menos a uma pena desproporcional, em regime fechado, mais severa que muitas punições aplicadas a criminosos reais, como os petistas do mensalão.
As manifestações de Silveira são mais que suficientes para justificar a perda do mandato – mas ela deveria vir da forma como manda a Constituição, com Silveira sendo julgado na Câmara, e jamais no Supremo, muito menos pelas vítimas de suas palavras
Tudo isso, por certo, não significa que parlamentares podem dizer o que bem entenderem e jamais serem punidos por isso. E a Constituição de 88 previu uma forma de deputados e senadores serem responsabilizados por palavras e opiniões: a cassação por quebra de decoro, decidida pelos seus pares, em votação na casa legislativa a que pertencerem. Não temos dúvida de que as manifestações de Silveira são mais que suficientes para justificar a perda do mandato – mas ela deveria vir da forma como manda a Constituição, com Silveira sendo julgado na Câmara, e jamais no Supremo, muito menos pelas vítimas de suas palavras.
Em resumo, o espetáculo que o STF oferece ao país pode ser resumido desta forma: elabore esquemas de corrupção gigantescos, que fraudam a democracia brasileira, e tenha direito a centenas de recursos rapidamente analisados – com direito a elogios lacrimosos de julgadores à tenacidade da defesa –, veja suas condenações anuladas sem nenhum motivo plausível e saia impune; seja um parlamentar aliado do governo, critique veementemente o Supremo e veja-se incluído em um inquérito abusivo, tenha sua imunidade parlamentar sumariamente revogada, veja seu advogado impedido de trabalhar e acabe preso em regime fechado. Este duplo padrão, por si só, já é bastante prejudicial à credibilidade do Judiciário; mas, por vir acompanhado da relativização de liberdades e garantias constitucionais, ainda faz do Supremo um elemento desestabilizador da vida nacional.
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