União nacional
Por
Guilherme Fiuza – Gazeta do Povo
O presidente do Brasil em 1956, Juscelino Kubitschek| Foto: EFE/Miguel Cortés/yv
O Brasil precisa olhar no retrovisor e tentar enxergar em quais situações esteve mais próximo da união nacional. A união completa é impossível. Mas um alto nível de convergência social, mitigando os movimentos de instabilidade e refração, não só é possível como indispensável para qualquer chance de desenvolvimento real. Seria um delírio falar em união num momento como o atual?
Vejamos. Juscelino Kubitschek uniu o Brasil? Não. Mas é sem dúvida um dos símbolos mais reconhecíveis de um período em que o país se sentiu nação. E não por causa do projeto megalômano e perdulário de Brasília.
Parênteses: dizer que o projeto Brasília foi megalômano e perdulário também não significa um juízo conclusivo de que isso foi ruim para os brasileiros, ou que não deveria ter sido feito. Quem somos nós para fechar uma conta tão complexa. Apenas estamos dando a nossa impressão de que se tratou de uma ação marcada pela megalomania e pela incontinência orçamentária – o que antigamente se podia fazer sem atrair a sanha dos juízes sumários de plantão. Fecha parênteses.
Então, fora o delírio de Brasília, Juscelino teve um mérito, digamos, pacificador. Era um líder positivo, apaixonado, idealista, sorridente. Tinha sensibilidade para gente – uma das principais características que definem um verdadeiro político, tão em falta nos dias de hoje. Há até um seu conterrâneo presidindo o Congresso e citando frequentemente seu nome em vão, sendo sua persona praticamente oposta à do lendário ex-presidente, especialmente no quesito sensibilidade para gente.
O fato de que Juscelino tinha boas antenas para captar pessoas não significa que ele deixasse de colocar a sua própria pessoa em primeiro lugar. Era um personalista. Existe personalismo gregário? Existe. E qual foi o saldo disso? Sei lá. Consulte aí o seu retrovisor. O que estamos assinalando é que o “presidente bossa nova” personificou uma positividade brasileira, uma alma coletiva de coesão e autoestima nacional menos vocacionada para a autofagia e a fragmentação. Isso não é pouco.
Getúlio Vargas também representou em certo momento um espírito de união, por incrível que pareça. Não como o ditador que “uniu” o país à força. Mas como aquele que voltou pelo voto a pedido da maioria – para comandar um governo problemático que terminou com o suicídio do governante. Foi então uma união desastrosa – diria você, com boas chances de ter razão. De qualquer forma, o exercício aqui é buscar na história quais elementos são capazes de unir (relativamente) o país, e tentar extrair alguma boa receita deles.
No populismo getulista, talvez o fator sadio de propensão à união estivesse no anseio firme dos que trabalham de não viverem subjugados pela elite fisiológica. Sim, existe a elite fisiológica. É a união do poder intelectual e econômico para sugar a maioria com pretextos de estado. Essa união não interessa a país nenhum, embora sempre se apresente com ótimas aparências. Dê uma olhada na micareta cívica de Jorge Paulo Lemann em Boston e encontre a adaptação para os dias de hoje do que estamos falando.
Houve na fermentação do getulismo algo desse legítimo anseio das pessoas comuns de reagir vigorosamente ao elitismo parasitário? Fica a pergunta.
Quase meio século depois do “queremismo” – o movimento que trouxe Vargas de volta ao poder por vias democráticas (que acabou mal, vamos sempre ressalvar, para acalmar os juízes da execução precoce), o país se uniu em torno do improvável. Outra ressalva: isto não é um inventário das conjunturas estáveis por que o país já passou. É só uma escolha arbitrária de alguns momentos históricos que possam, talvez, dizer algo sobre o espírito de união nacional, presumindo que ele exista.
O improvável unificador no apagar das luzes do século 20 não foi um líder carismático. Foi uma ação efetiva. O espírito de congregação dos brasileiros foi despertado pela batalha contra o dragão invencível. O ataque contundente à inflação após sucessivas escaramuças que só aumentaram o poder de fogo do monstro encheu de brio os brasileiros. Foi um dos períodos históricos mais desoladores para os vendedores de segregação.
Hoje a segregação está na moda – e virou um poderoso ativo de mercado. Pode estar aí o início da conversa sobre chances atuais de união nacional. Sim, é um papo inocente. Mas com tantos culpados em cena, um pouco de inocência não fará mal a ninguém. Dá uma olhada no espelho (retrovisor).
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