Editorial
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Gazeta do Povo
Suspensão de reajuste inicialmente proposta para o Ceará pode ganhar abrangência nacional.| Foto: Fernando Jasper/Gazeta do Povo
Uma das regras mais importantes – se não for a mais importante – a ser seguida por um país que deseja atrair investimentos é cumprir os contratos. Ninguém se arriscaria a arrematar uma concessão, comprar uma estatal privatizada ou se comprometer a construir ou ampliar unidades fabris se perceber que, a qualquer momento, o poder público pode intervir e desfazer o que está legalmente acertado. Pois o que a Câmara dos Deputados está prestes a fazer é enviar ao investidor, brasileiro ou estrangeiro, um péssimo sinal a respeito do nível de segurança jurídica dos contratos no país.
Insatisfeito com a autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para que a Enel Distribuição Ceará promova um aumento de 23,99% em suas tarifas, o deputado federal Domingos Neto (PSD-CE) apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 94/2022, que simplesmente suspende o reajuste. Para piorar, o próprio autor da proposta admitiu que há o objetivo de alterar o texto no plenário da Câmara para ampliar seu alcance a qualquer reajuste autorizado pela agência reguladora em 2022 – antes mesmo do PDL de Domingos Neto, as deputadas Talíria Petrone (PSol-RJ) e Rose Modesto (PSDB-MS) já haviam apresentado propostas semelhantes para derrubar reajustes no Rio de Janeiro e no Mato Grosso do Sul, e há a possibilidade de apensar estes e outros PDLs ao texto do deputado cearense. Desde o dia 3, a proposta está tramitando em regime de urgência, aprovado pela Câmara por avassaladores 410 votos a 11; mesmo no Novo, o único partido que orientou voto contrário à urgência, dois deputados foram favoráveis.
Câmara passará a mensagem de que no Brasil os contratos não valem o papel em que são redigidos, pois a qualquer momento um governante ou parlamentar populista pode ignorar seus termos e impor perdas ao investidor
A energia elétrica tem representado fatia importante dos gastos do brasileiro. A crise hídrica, hoje praticamente superada, levou à criação de uma nova bandeira tarifária, ainda mais cara que a “vermelha 2”, resultado da necessidade de ativar mais usinas termelétricas, mais caras. O reajuste, autorizado justamente quando a conta de luz tinha tudo para cair, com o retorno à bandeira verde, é um banho de água fria no consumidor. Mas os aumentos autorizados pela Aneel estão ocorrendo exatamente de acordo com o previsto nos contratos; além disso, a Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee) alega que os porcentuais de 2022 contêm uma recomposição referente a aumentos que deveriam ter sido concedidos durante a pandemia, mas foram represados.
Dois casos emblemáticos vêm à mente do brasileiro neste momento, e um deles tem relação com o próprio setor elétrico. A Medida Provisória 579, assinada por Dilma Rousseff em setembro de 2012, foi saudada em rede nacional de rádio e televisão às vésperas de sua entrada em vigor, como um instrumento que reduziria as tarifas de energia. No entanto, ela atingia esse objetivo desorganizando completamente o setor, forçando o vencimento de concessões e colocando as empresas contra a parede. Em 2013, uma crise hídrica piorou a situação; não demorou para que a conta de luz voltasse aos mesmos níveis de antes da MP e continuasse subindo. Ainda hoje o brasileiro está pagando o estrago na forma de indenizações às empresas de transmissão.
O segundo caso é bem conhecido dos paranaenses, mas ilustra à perfeição as consequências que o país todo pode sofrer graças a voluntarismos como o do PDL 94. Em 1998, o então governador do Paraná, Jaime Lerner, reduziu unilateralmente as tarifas de pedágio das concessões realizadas um ano antes. As empresas buscaram o Judiciário para garantir seus direitos e a batalha durou décadas, com aditivos e alterações nos contratos que fizeram do Paraná o estado com o pedágio mais caro do país até o vencimento das concessões, em novembro de 2021. A confusão criada foi tanta que duas consultorias renomadas e independentes, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e a Fundação Instituto de Administração (FIA), analisaram a papelada e chegaram a conclusões opostas sobre quem havia sido beneficiado e prejudicado com todas as emendas aos contratos. A judicialização já é um dos caminhos possíveis citados pelas empresas de energia caso o PDL de Domingos Neto prospere.
É inegável o componente eleitoreiro da proposta; seus autores e aqueles que derem seu voto ao PDL poderão incrementar seu capital político dizendo aos eleitores em seus estados que ajudaram a impedir um aumento na conta de energia elétrica – também o episódio do pedágio paranaense foi uma cartada de Lerner na campanha pela reeleição. Mas o que conseguirão, ao fim, será apenas um benefício temporário a um custo enorme para o consumidor no médio e longo prazo, pois mais cedo ou mais tarde os valores congelados agora precisarão ser compensados em reajustes ainda mais salgados. Se os parlamentares querem realmente trabalhar para baratear a energia elétrica, que deixem de lado intervencionismos e invencionices como os jabutis incluídos na privatização da Eletrobrás, e trabalhem por uma boa reforma tributária e pela abertura do mercado, com verdadeira competição.
E o maior prejuízo, sem dúvida, será a mensagem de que no Brasil os contratos não valem o papel em que são redigidos, pois a qualquer momento um governante ou parlamentar populista pode ignorar seus termos e impor perdas ao investidor. Neste momento em que marcos legais como os do saneamento e o das ferrovias trazem a perspectiva de dezenas, quando não centenas de bilhões de reais em investimentos privados, a Câmara trabalha ativamente para alarmar todos os interessados em entrar no mercado brasileiro.
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