Ex-juiz da Lava Jato
Por
Renan Ramalho – Gazeta do Povo
Brasília
Ex-juiz Sergio Moro se tornou réu em ação na qual deputados do PT pedem indenização por supostos prejuízos causados à cadeia de óleo e gás pela Lava Jato.| Foto: Jonathan Campos/Arquivo Gazeta do Povo
A ação popular apresentada no fim de abril por deputados do PT contra Sergio Moro, acusando-o de causar prejuízo ao patrimônio público, à economia do país e à Petrobras, tem natureza política e deveria ser rapidamente rejeitada. É a visão de juristas consultados pela Gazeta do Povo, que apontam vários vícios processuais e no próprio mérito da ação.
Nesta terça-feira (23), o juiz federal Charles Renaud Frazão de Morais, sorteado para analisar o caso, citou Sergio Moro para que se manifeste acerca das acusações. O Ministério Público Federal também foi intimado para acompanhar a ação, e deverá, com seu parecer, avaliar se é o caso de produzir mais provas para o processo e opinar pela responsabilização ou não de Moro.
Do ponto de vista formal, o ato judicial de citar alguém numa ação popular – que pode ser impetrada por qualquer cidadão à Justiça para anular e reparar uma lesão ao patrimônio público – o torna automaticamente réu no processo.
Esse despacho, no entanto, não traz nenhum valor de mérito sobre a decisão. Como informa o próprio andamento processual da ação, é um “despacho de mero expediente”. Serve, basicamente, para comunicar o acusado, que só então poderá se defender no caso.
A ação popular tem natureza cível e, portanto, seu recebimento pelo juiz não exige o mesmo rigor de análise de uma denúncia criminal, mais grave, quando o magistrado faz um juízo prévio de “procedibilidade”, ou seja, avalia se há indícios mínimos de autoria e ocorrência de um delito, para só então tornar o acusado réu.
“Não significa absolutamente nada em termos de mérito. Simplesmente recebeu a ação inicial e mandou citar a pessoa demandada. É diferente quando o juiz vai receber uma ação penal, em que faz um juízo de procedibilidade. No caso de uma ação popular, é diferente, não existe esse juízo, que diz respeito a indícios mínimos. Como a ação popular é regida pelo Código de Processo Civil, avalia-se se há legitimidade de parte, capacidade postulatória do advogado, etc. Qualquer um pode virar réu de ação civil”, diz um advogado que conhece a fundo a Lava Jato, e que pediu para não ser identificado nesta reportagem.
Um vício considerado grave na ação do PT é o fato de ter como objeto atos jurisdicionais, ou seja, decisões de Moro enquanto juiz de processos da Lava Jato, principalmente relacionados ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A ação acusa Moro por atos próprios de qualquer magistrado que supervisiona uma investigação e tem por dever legal analisar e decidir se atende ou não a pedidos de diligências apresentados pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal, que tocam as investigações.
Os deputados do PT, no entanto, acusam Moro:
Por ter autorizado a interceptação telefônica sobre um dos advogados de Lula – que, segundo o MP, estaria envolvido em lavagem de dinheiro;
Por ter determinado a condução coercitiva do ex-presidente – na época, início de 2016, ele já havia prestado depoimento ao MP paulista, que também investigava o tríplex;
Por ter divulgado uma conversa telefônica de Lula com a ex-presidente Dilma Rousseff, na qual tratavam da nomeação dele para a Casa Civil, transferindo assim seus processos para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Todas essas medidas são previstas em lei e foram autorizadas, a pedido do MP ou da PF, de forma fundamentada, ou seja, com argumentos jurídicos que demonstravam sua necessidade para produzir provas no processo. Todas elas também foram contestadas pela defesa na própria Justiça por meio de recursos e, em alguns casos, Lula conseguiu anular as provas.
A vitória mais significativa, baseada nos mesmos atos, foi a declaração de suspeição de Moro pelo STF, que levou todos os processos para a estaca zero e depois à prescrição.
A ação popular, no entanto, vai além, porque busca condenar Moro ao pagamento de uma indenização ao Estado, por suposto prejuízo aos cofres públicos pela própria atuação como juiz. A jurisprudência do STF e do Superior Tribunal de Justiça rechaça esse tipo de iniciativa.
Precedentes que depõem contra a ação popular
Uma decisão paradigmática, que impede o prosseguimento de ação popular contra atos jurisdicionais, foi proferida ainda em 2000 pelo STF. O acórdão, relatado pelo ministro Celso de Mello, é claro ao afirmar que “atos de conteúdo jurisdicional – precisamente por não se revestirem de caráter administrativo – estão excluídos do âmbito de incidência da ação popular, porque se acham sujeitos a um sistema específico de contestação, quer por via recursal, quer mediante utilização de ação rescisória”.
A ação popular visa a anulação de atos lesivos ao patrimônio, mas no caso de decisões judiciais, o meio para revertê-las são os recursos e, no caso de uma ação transitada em julgado, um outro tipo de ação, a rescisória, que revisa um processo para anular sua decisão final.
Esse precedente do STF admite que juízes sejam alvos de ação popular quando seus atos são administrativos, ou seja, envolvem mau uso de recursos públicos, materiais ou humanos ligados à burocracia do gabinete ou do tribunal, por exemplo. Não estão, portanto, ligados à atividade-fim do juiz, que é julgar uma causa.
“O juiz criminal tem que ter o livre convencimento para poder decidir. E você tem toda uma cadeia recursal própria para reversão de decisões judiciais. E também o próprio Sergio Moro foi objeto de escrutínio por parte do Conselho Nacional de Justiça, que também não viu nenhuma irregularidade na sua conduta. Na verdade, essa ação popular visa, por vias transversas, obter o reconhecimento de uma absolvição que a Justiça Criminal não reconheceu até agora. Se houve anulação, não foi por mérito. A ação é um subterfúgio e uma tentativa de descredibilizar o trabalho da Justiça. A prevalecer esse entendimento, é uma afronta à magistratura”, diz o mesmo advogado.
Na ação, os advogados do PT reconhecem a existência desse precedente do STF, mas tentam contorná-lo dizendo que vários atos de Moro eram desconhecidos e não eram passíveis de recurso. É uma referência às supostas mensagens obtidas por hackers, vazadas para a imprensa, e que alimentaram a narrativa de que ele teria orientado os procuradores da força-tarefa da Lava Jato.
Nesse ponto, a jurisprudência também é pacífica contra o uso de prova obtida de forma criminosa, sem qualquer garantia de autenticidade e integridade, para acusar alguém.
“Qualquer juiz que tiver lido isso, imagino que estará rindo, ainda que ele seja contrário ao Moro. Isso é político só. E o juiz deve julgar essa ação manifestamente improcedente. Por mais que tenham tentado superar os óbices processuais, a ação tem viés mais político que jurídico”, diz o advogado Alberto Pavie Ribeiro, habitado a atuar em defesa de magistrados.
Toda a ação do PT se baseia na ideia de que Moro atuou na Lava Jato para perseguir Lula politicamente e tirá-lo das eleições de 2018, ajudar a eleger o presidente Jair Bolsonaro, se cacifar para ser ministro do STF e depois candidato, ele mesmo, à Presidência da República. A ação desconsidera, no entanto, as centenas de decisões sobre outros réus, condenados ou absolvidos, inclusive os que confessaram seus crimes em acordos de delação e devolveram milhões de reais que haviam desviado e depositado em contas em paraísos fiscais no exterior.
Também não leva em conta que, contra Lula, boa parte das decisões foi confirmada em segunda instância e também no Superior Tribunal de Justiça, que elevaram suas penas. A condenação no caso do triplex, por exemplo, foi assinada por Moro em 2017, quando Bolsonaro ainda não era oficialmente candidato à Presidência nem cogitava chamar o ex-juiz para ser ministro caso se elegesse.
Supostos prejuízos foram calculados por entidades ligadas ao PT
Por fim, o PT busca obrigar Moro a pagar um ressarcimento de um valor não definido na ação. A petição defende a “prescindibilidade de demonstração do dano material quando evidenciados os prejuízos morais ao patrimônio público” e que a atuação de Moro gerou para a Lava Jato “vultosos ganhos políticos e econômicos para seus participantes”.
Para tentar provar o prejuízo à União e à Petrobras, a ação diz que a operação causou um “desarranjo econômico” no país, com impacto nos setores de construção, óleo e gás – as principais empresas investigadas, como se sabe, admitiram em acordos de leniência que pagavam propina para diretores e políticos para obter contratos superfaturados para construção de refinarias, embarcações e infraestrutura para produção de petróleo.
Em poucas linhas e sem demonstrar como foram feitos os cálculos, a ação do PT cita um estudo de uma professora da PUC-SP segundo a qual a Lava Jato teria retirado R$ 142,6 bilhões da economia brasileira. A cifra foi também citada pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF, no julgamento sobre a suspeição de Moro.
Depois, o PT também apresenta uma tabela do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) – entidade historicamente ligada ao partido –, apontando que 4,4 milhões de empregos foram “ceifados” com a Lava Jato, o que teria levado o Estado a deixar de arrecadar R$ 20,3 bilhões em tributos. Novamente, não há a demonstração de como o valor foi calculado.
Um outro estudo, do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep) – criado pela Federação Única dos Petroleiros (FUP), com forte influência do PT – ainda estima que as empresas afetadas pela Lava Jato teriam deixado de investir R$ 172 bilhões.
Todos esses montantes são apresentados na ação para tentar demonstrar o prejuízo que Moro teria causado, mas, no final da ação, o PT não define um valor preciso que ele teria de pagar. “Isso não impede o julgamento da presente ação, pois o valor da lesão pode ser calculado durante a instrução processual ou, quando muito, por meio do cumprimento de sentença”, diz a ação.
Quanto a Lava Jato devolveu à Petrobras e à União
Oficialmente, a Petrobras já recuperou R$ 6,28 bilhões que foram desviados de seu caixa. O dinheiro veio de ex-gestores da estatal e executivos de empresas que confessaram seus crimes e devolveram os recursos. O Ministério Público Federal ainda espera recuperar ao menos mais R$ 18,3 bilhões em 43 acordos de leniência e 156 de colaboração premiada. Parte irá para a Petrobras e parte para a União. Nessas ações, a própria Petrobras se diz vítima dos crimes e participa como assistente de acusação. No exterior, a estatal já foi condenada a pagar indenizações pelos prejuízos que causou a acionistas privados.
Para o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Eduardo André Brandão, a ação do PT tem claro viés político. “De todas as decisões judiciais cabem recursos e eles foram interpostos. Muitas decisões foram mantidas e então, esse tipo de postura não dá para concordar, de dar sempre viés político para decisões judiciais que foram baseadas em provas. Os valores que foram devolvidos para o erário fazem toda a diferença e mostram a importância da transparência”, afirma.
Para ele, ações do tipo trazem risco e insegurança para a magistratura. “Não é interessante esse tipo de postura, afinal, os processos foram julgados com provas, as decisões foram mantidas na maioria das vezes.”
O que Moro diz sobre a ação popular
O ex-juiz Sergio Moro afirmou, nas redes sociais, que a ação proposta por membros do PT contra ele “é risível”. “Todo mundo sabe que o que prejudica a economia é a corrupção e não o combate a ela. A inversão de valores é completa: Em 2022, o PT quer, como disse Geraldo Alckmin, não só voltar a cena do crime, mas também culpar aqueles que se opuseram aos esquemas de corrupção da era petista”, escreveu.
Ele reforçou ainda que a decisão do juiz de citá-lo “não envolve qualquer juízo de valor sobre a ação”.
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