Editorial
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Gazeta do Povo
ICMS, cobrado pelos estados, é componente importante do preço final dos combustíveis.| Foto: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas
A recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto de lei que limita a alíquota de ICMS a ser cobrada de combustíveis, gás natural, energia elétrica, transporte coletivo e serviços de telecomunicação é o mais recente desdobramento de todo o cenário de insatisfação coletiva com os altos preços dos combustíveis, que por sua vez alimentam a persistente alta da inflação. O Projeto de Lei Complementar 18/2022 elenca esses produtos e serviços como essenciais, proibindo que suas alíquotas de ICMS sejam maiores que as “das operações em geral”. Na prática, isso significa que o imposto estadual cobrado sobre esses itens não poderá superar 17% – ainda que este número não esteja presente nem no PLP 18, nem nas leis que ele altera, como a Lei Kandir e o Código Tributário Nacional, ele é a média das alíquotas-base cobradas nos estados.
Para que se chegasse a essa situação, foi necessária uma enorme série de erros que se acumularam ao longo das décadas. A causa remota está no próprio desenho da tributação nacional: ainda que os estados tenham muitas atribuições em termos de serviços públicos, como saúde, educação e segurança pública, eles recebem uma fatia minoritária de tudo o que é retirado da sociedade na forma de impostos. Ainda por cima, essa fatia é dominada pelo ICMS, que é o carro-chefe da arrecadação de qualquer estado. Dessa forma, governadores e secretários de Fazenda acabam tentados a maximizar as receitas decorrentes desse imposto para que consigam dar conta de todas as suas despesas. E isso leva ao segundo erro.
Por mais importante que seja agir para conter a inflação, por mais imoral que seja uma tributação tão excessiva sobre itens tão essenciais, por mais que o Congresso tenha a competência legal para estabelecer o que está no PLP 18, este processo não está sendo conduzido de forma a respeitar o modelo federativo
Combustíveis, energia elétrica, transporte público e telecomunicações são bens e serviços que praticamente toda a população consome, e em grandes quantidades; tributá-los mais pesadamente é certeza de receita substancial. Mas, ao mesmo tempo, é inegável o caráter essencial desses itens; não faz o menor sentido impor-lhes alíquotas de ICMS superiores nem às alíquotas-base, muito menos à alíquota de itens verdadeiramente supérfluos ou cujo consumo se deseja desestimular, por quaisquer razões. Ainda que a lei permitisse aos gestores tributar combustíveis e energia dessa forma, não é razoável que o façam – e, em um cenário ideal, governadores que optassem por esse caminho acabariam punidos nas urnas pelos eleitores, que também são consumidores e contribuintes, embora esse tema dificilmente ganhe relevância nas campanhas eleitorais.
No fim do ano passado, entretanto, o STF entrou na discussão. Em ação impetrada pelas Lojas Americanas, o plenário da corte decidiu que as alíquotas de ICMS de energia elétrica e serviços de telecomunicações não poderiam superar a média, que consistia nos referidos 17%. Apesar de a ação questionar apenas uma lei do estado de Santa Catarina, o Supremo também afirmou que a decisão tinha repercussão geral, valendo para todo o país, com um período de transição que se encerraria em 2024. E, ao contrário de outros casos em que o Supremo resolveu fazer política tributária sem poder para tal, neste caso havia uma interpretação possível (ainda que não a única), com base constitucional, para uma limitação. O artigo 155 da Carta Magna, que trata dos impostos estaduais e municipais, afirma, a respeito do tributo sobre “circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação” (inciso II), que ele “III – poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. Ora, admitindo-se que possa haver alíquotas diferentes, pressupõe-se do texto constitucional que, quanto mais essencial o produto ou serviço, menor seja a tributação sobre ele, e não maior, como vinha sendo feito no caso dos combustíveis, da energia e dos serviços de telecomunicações.
A intervenção do Supremo foi usada como justificativa durante a tramitação do PLP 18, que, segundo seus defensores, estaria apenas adiantando os efeitos da decisão e adicionando itens que, sendo essenciais, não estavam em jogo do julgamento de 2021. E é assim que retornamos aos equívocos e precipitações. Não apenas o período de transição foi simplesmente abolido, tirando dos estados o tempo necessário para recalcular as alíquotas de outros itens como forma de compensação, mas ainda há sérias divergências a respeito da perda de arrecadação dos estados com o PLP 18. Enquanto o Ministério da Economia alega que a queda não superará os 5%, entidades representativas de estados e municípios calculam as perdas entre R$ 66 bilhões e R$ 83 bilhões. E, mesmo com a trava que prevê o abatimento, nas dívidas dos estados, de toda queda de arrecadação que superar os 5%, o efeito inevitável é tornar os governadores ainda mais dependentes da “generosidade” do Planalto, na forma de repasses dos fundos de participação.
Em suma: por mais importante que seja agir para conter a inflação, por mais imoral que seja uma tributação tão excessiva sobre itens tão essenciais, por mais que o Congresso tenha a competência legal para estabelecer o que está no PLP 18, este processo não está sendo conduzido de forma a respeitar o modelo federativo – pelo contrário, tende a enfraquecê-lo ainda mais. A mudança apressada, sem que se saiba ao certo o seu efeito sobre as contas dos estados, equivale a colocar uma faca no pescoço dos governadores, como se eles fossem os únicos responsáveis pelos combustíveis caros, quando na verdade há inúmeros outros fatores envolvidos na composição dos preços cobrados nos postos.
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