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Três meses de conflito
Guerra se estende e ações de guerrilha se espalham pela Ucrânia
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Luis Kawaguti – Gazeta do Povo
Outdoor na Ucrânia com instruções sobre como preparar e lançar um coquetel molotov| Foto: Luis Kawaguti
Após três meses de guerra na Ucrânia, começam a ficar evidentes os indícios de ações realizadas por partisans, guerrilheiros ucranianos, em cidades invadidas pelos russos. Quanto mais o conflito se estender, as ações de guerrilha vão ocorrer em paralelo à guerra de alta intensidade entre exércitos.
Na última semana, uma das ações mais clássicas de partisans – o descarrilamento de um trem – fez Moscou reconhecer oficialmente que ações de guerrilha vêm ocorrendo em cidades ocupadas.
O ataque à linha de trem ocorreu na quarta-feira (25), segundo levantamento do think tank americano ISW (sigla em inglês para Instituto para o Estudo da Guerra). Ela liga a região da Crimeia, invadida pela Rússia em 2014, à cidade de Melitopol, no sudeste da Ucrânia.
Desde o início da guerra, analistas militares especularam que, se o objetivo da Rússia for anexar a Ucrânia, a guerra pode se estender por décadas, devido à ação de movimentos de resistência. Cenário similar ocorreu no início deste século no Afeganistão (2001-2021) – daquela vez com os Estados Unidos e seus aliados como protagonistas da invasão.
A formação da resistência ucraniana começou em meados de 2014, quando a Rússia invadiu a Crimeia e separatistas apoiados por Moscou tomaram parte dos oblasts (espécie de estado) de Luhansk e Donetsk – região conhecida como Donbas.
O governo de Kyiv passou a receber ajuda de “consultores militares” americanos e britânicos: na prática, operadores de forças especiais. Entre as suas especialidades, está entrar em um território amigo para recrutar, organizar e treinar combatentes. Um exemplo clássico são os “boinas verdes” americanos que atuaram na Guerra do Vietnã.
Esses consultores ajudaram as forças armadas ucranianas a traçar planos e começar a treinar cidadãos comuns em táticas de guerrilha, defesa urbana, sabotagem, primeiros socorros, entre outras “disciplinas”.
Não se sabe exatamente quantos cidadãos foram treinados, mas a grande maioria foi incorporada à chamada “Defesa Territorial”, uma milícia formada por civis que recebem um breve treinamento militar. Ela é destinada a atuar como polícia militar e na defesa de prédios e instalações na retaguarda. Mas, na prática, está recebendo também voluntários internacionais e sendo mandada para lutar na linha de frente, ombro a ombro com o exército ucraniano regular.
Mas quando os primeiros mísseis russos começaram a cair sobre as principais cidades ucranianas em 24 de fevereiro, o movimento de resistência tomou uma proporção muito maior. Dentro dos abrigos antiaéreos, pessoas comuns começaram a se organizar espontaneamente ou com ajuda de militares para executar tarefas como coletar e distribuir água, alimentos e remédios.
Quando cheguei à Ucrânia, quatro dias após o início da guerra, já encontrei idosos, mulheres e adolescentes organizados em grupos que produziam bombas caseiras incendiárias (coquetéis molotov) e redes de camuflagem e também distribuíam alimentos e produtos de higiene. Havia muitas falhas logísticas e as coisas pareciam estar sendo feitas às pressas. A sensação é que, ao menos no oeste do país, as pessoas haviam sido avisadas do perigo, mas não tinham levado aquilo muito a sério nos meses anteriores.
Escalando esse movimento, o presidente Volodymyr Zelensky declarou lei marcial, proibiu todos os homens em idade militar de deixar o país e disse que quem quisesse ter uma arma para defender a Ucrânia iria recebê-la. Este colunista presenciou dezenas de pessoas entrando em centros de recrutamento e horas depois saindo de lá ainda em roupas civis carregando fuzis de assalto Kalashnikov a tiracolo e carregadores de munição.
Em paralelo, o governo ucraniano começou a lançar sites de internet onde é possível encontrar informações detalhadas para a resistência. Eles ensinam, por exemplo, como roubar e dirigir um tanque russo, como fazer granadas de fumaça, como defender uma rua contra uma coluna de blindados, como fazer trincheiras, barricadas e seteiras para disparo de armas de fogo – além de conter manuais de instruções de uso dos mais variados tipos de mísseis antitanque.
Um dos sites também ensina a população a reconhecer equipamentos estratégicos russos, como sistemas de radar, defesa antiaérea e estruturas de comando (onde ficam os oficiais). O site mostra como repassar as localizações desses equipamentos ao governo ucraniano – para que possam ser atacados por tropas regulares. Mas o site aconselha que, caso o cidadão se sinta seguro para agir, tente atacar esses equipamentos e locais usando coquetéis molotov.
Aliás, nas ruas de Zaporizhzhia, cheguei a ver placas de rua e outdoors com instruções detalhadas de como fazer coquetéis molotov e sobre onde arremessá-los ao atacar um carro de combate inimigo. A propaganda de rua tinha também um efeito intimidatório, caso as tropas de Moscou conseguissem entrar na cidade.
Toda essa preparação da resistência parece ter colaborado para os russos desistirem da tomada da capital, Kyiv, em 4 de março. Andei pela cidade na época e vi materializadas praticamente em cada esquina as técnicas de defesa de território descritas no site. Isso sem contar a presença do exército regular e da força aérea ucraniana.
Mas, ao contrário de Kyiv, essas defesas não bastaram para evitar que os russos tomassem diversas cidades ucranianas, como, por exemplo, Kherson, Melitopol, Energodar, Berdiasnk, Mariupol, Izyum, além de centenas de pequenas cidades e vilarejos.
É agora, nessas cidades, que vamos ver se a preparação para a guerrilha vai ou não render frutos para a Ucrânia.
“Depois das conquistas, os russos vão ter que estabilizar as cidades, vão ter que botar as cidades para funcionar. E aí vai haver a reação ucraniana, uma guerra de baixa intensidade, a guerra está longe de terminar”, afirmou o analista militar Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, coronel da reserva do Exército e autor do Blog do Paulo Filho.
“Nesta fase de estabilização, digamos que os russos conquistem toda a região sul da Ucrânia, para cortar o acesso do país para o mar. Como vai ser daí para frente? Lembrando do Afeganistão: os Estados Unidos conquistaram o Afeganistão em meses, mas passaram 19 anos tentando estabilizar e não conseguiram. Eles saíram e o Talibã voltou ao poder”, disse.
Essa resistência começou da forma mais simples: com manifestantes desarmados indo às ruas de cidades como Kherson ou Melitopol para, em grande volume, ocupar ruas e dificultar a passagem de veículos militares – numa espécie de resistência pacífica. A reação da Rússia foi dispersar os manifestantes com armamento não letal.
Mas também começam a acontecer ações mais singelas, como trabalhadores sabotando equipamentos de fábricas ou escritórios, danificando redes elétricas ou sabotando veículos russos. Ou ainda se recusando a participar de censos e pesquisas que podem ser manipulados pela Rússia para dar a ideia de que os habitantes de determinada cidade querem ser “libertados”.
Segundo uma reportagem da BBC, ao invadir Melitopol, os soldados russos teriam ficado chocados ao perceber que não eram bem-vindos. Isso porque Moscou promove entre suas tropas a visão mentirosa de que estão “libertando” a Ucrânia de um governo nazista (há neonazistas na Ucrânia, no Batalhão Azov especificamente, não no governo, mas da mesma forma que há em vários países. Mas não vou entrar nessa discussão neste texto, deixo para os leitores debaterem na caixa de comentários).
Estamos falando aqui da parcela descontente com a ocupação russa, sem descartar que uma parte da população das cidades ocupadas aprovou ou ficou indiferente à invasão.
Contudo, como mencionei no início do texto, além da resistência pacífica, estão ocorrendo ações violentas de partisans, ao menos desde a metade do mês de março, segundo o ISW.
Alguns dias antes do ataque à ferrovia da Crimeia, o prefeito colocado à força no cargo pela Rússia em Energodar, Andrey Shevchik, e seus seguranças sofreram uma tentativa de assassinato. Eles foram atingidos por um explosivo improvisado escondido em uma caixa de distribuição da rede elétrica no prédio da mãe do prefeito. Todos sobreviveram, segundo a agência de notícias russa TASS.
Energodar é a cidade onde fica a usina nuclear de Zaporizhzhia, que foi tomada pelos russos no início da campanha. Em outros episódios, partisans ucranianos explodiram pontes e emboscaram militares russos na retaguarda.
Não é possível afirmar quem eram os partisans que realizaram as ações mais complexas. Há centenas, talvez milhares de voluntários, mercenários, dinamitadores e soldados profissionais de outras nações combatendo na Ucrânia. E o exército ucraniano também possui unidades de elite (comandos), que poderiam realizar essas ações.
Além disso, não há dados verificados sobre o número de ações, mas a Diretoria de Inteligência Militar da Ucrânia afirmou que entre 20 de março e 12 de abril partisans ucranianos mataram 70 soldados russos que faziam patrulhas em territórios ocupados. Esse número é relativamente pequeno para a escala da guerra – o próprio governo ucraniano estima que cem militares ucranianos estão sendo mortos por dia em ataques de artilharia na região de Donbas.
Ou seja, tudo isso nos leva a dois pontos principais: sem discutir o mérito do direito dos cidadãos de se defenderem, a Rússia pode alegar que toda a população ucraniana é insurgente e assim tentar justificar ataques a civis. Eles podem estar certos em parte, mas muita gente inocente já está morrendo por causa disso.
O outro ponto é que a Rússia terá que travar uma guerra longa e sangrenta se quiser manter o controle e acabar com a resistência nas cidades que já invadiu.
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