Alimentos seguros

Por
Marcos Tosi

EXPEDIÇÃO SAFRA MG/GO – RIO VERDE – 28/11/2013 – AGRNEGÓCIO – Expedição Safra Minas Gerais e Goiás, passando por Rio Verde e região. Pulverizando de veneno para evitar a proliferação da helicoverpa. – Foto: Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo


Planta de soja em lavoura de Rio Verde, Goiás| Foto: Antônio More / Arquivo Gazeta do Povo

Dentre os líderes da produção agrícola mundial, o Brasil é o país que enfrenta seus competidores com o freio de mão puxado quando se trata da adoção de novas moléculas para controle de pragas e doenças. Por aqui, costuma demorar de oito a 10 anos – há casos de 12 anos – até que um defensivo agrícola mais moderno e eficiente consiga obter registro para ingressar no mercado. Em nossos principais competidores esse prazo costuma ser, em média, de três a quatro anos.

O problema não estaria na má vontade dos órgãos de regulação e aprovação – Agência de Vigilância Sanitária, Ibama e Ministério da Agricultura –, mas nos trâmites administrativos para pedidos de novos registros, que seguem ritos de mais de 30 anos atrás. A lei atual é de 1989, época quando ainda vigoravam os processos em papel, quando a internet sequer existia no Brasil.

Depois de 20 anos tramitando na Câmara, o fato é que o Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, chamado de Projeto Alimento Mais Seguro pelos defensores, e de Pacote do Veneno pela oposição, foi aprovado pelos deputados em fevereiro e aguarda reanálise no Senado, casa de origem da proposição. As diferenças semânticas, e conceituais, chegam à própria nomenclatura adotada no Brasil para os defensivos agrícolas. O país é o único no mundo que usa o termo “agrotóxico” para classificar essas substâncias. A proposta do projeto é substituir por “pesticidas”, como já são classificados em outros países falantes da língua portuguesa e do inglês. O entendimento é de que o termo “agro” da palavra agrotóxico pode sugerir o uso apenas no meio rural, mas os mesmos princípios ativos estão presentes tanto nas lavouras como em raticidas, inseticidas e desinfetantes.

Lei pretende dar celeridade à análise dos registros
Dizendo que tentará “conciliar interesses” entre o desenvolvimento econômico e a questão ambiental, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), decidiu que a votação do Projeto de Lei seguirá seu curso normal nas comissões, “sem açodamento”.

Desde a aprovação na Câmara, oposicionistas, ambientalistas e ONGs intensificaram a campanha para barrar a atualização da lei. Em abaixo-assinado online, o Greenpeace, por exemplo, alardeia algo que não está no texto: afirma que o projeto irá “tirar o poder de decisão de aprovação da Anvisa e do Ministério do Meio Ambiente, transferindo a responsabilidade exclusivamente para o Ministério da Agricultura”.

A distorção irrita o deputado federal Sergio Souza (MDB-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. “Uma mentira quando muitas vezes contada se torna uma verdade. É muito simples, é só pegar o texto e ler. Está muito claro. O órgão registrador é o Ministério da Agricultura e continua sendo o Ministério da Agricultura. Quem faz a análise de toxidade é a Anvisa e continua sendo a Anvisa; quem analisa se faz mal ao meio ambiente é o Ibama, e continua sendo o Ibama. Quem faz registro é o Ministério da Agricultura e isso não mudou. O que precisamos é de uma legislação que dê celeridade na análise, para dizer sim ou não.”.

Anvisa e Ibama seguirão com voz ativa no registro dos pesticidas
Christian Lohbauer, presidente da Croplife Brasil – associação que reúne especialistas, instituições e empresas da área de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias para a agricultura – compartilha do espanto com a crítica a algo que não está no projeto. “Nunca mudou nada no perfil de avaliação. A única coisa que aconteceu, é que, antes, do ponto de vista administrativo, você pagava uma taxa para as três entidades fazerem uma avaliação. Agora é só uma taxa para o Ministério da Agricultura. E se a Anvisa indeferir um produto, o ministério pode deferir? Ora, ele sempre pôde, mas certamente não vai fazer isso. Por que a responsabilidade será de quem assinar o deferimento. E se houver um indeferimento da Anvisa, eu não conheço nenhum cristão que terá coragem de assinar um documento que a Anvisa desautoriza por questões toxicológicas”.

De fato, o texto é claro quanto às atribuições. O Capítulo III do PL, Seção I, inciso VII do Artigo 5º, que trata das competências dos órgãos federais, afirma que caberá ao Ministério da Agricultura “definir e estabelecer prioridades de análise dos pleitos de registro de pesticidas para os órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde e do meio ambiente de acordo com os alvos biológicos de maior importância econômica”. Caio Carbonari, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e vice-presidente da Sociedade Brasileira da Ciência das Plantas Daninhas, destaca tratar-se de uma reorganização dos fluxos de tramitação, e diz que é legítimo que o Ministério da Agricultura defina prioridades de análise, no sentido de determinar o que é importante para a agricultura brasileira. “É uma atualização que permite convergência regulatória e científica com o resto do mundo. E tem gente que trata como pacote do veneno, sem se debruçar sobre a questão científica”, observa.

Nova lei dos defensivos dá prazo para análise dos pedidos de registro
Para assegurar que um pedido de registro de um defensivo não fique “esquecido” ou ignorado por tempo indeterminado, o projeto de lei estabelece a possibilidade do Registro Temporário (RT). Isso ocorrerá quando o solicitante cumprir as exigências legais, mas não houver manifestação conclusiva dos órgãos governamentais no prazo de dois anos. Para que esse RT seja concedido, no entanto, será preciso que os produtos já estejam registrados para culturas ou usos ambientais similares em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

“Considerando que o ser humano é o ser humano, e a natureza é a natureza, se três países estão usando aquele produto, a autorização temporária será dada. A oposição trata esse tema como se fosse uma liberalização geral, como se fosse uma pressão das empresas colocando goela abaixo do sistema regulatório a aprovação de qualquer produto, e não é disso que se trata. Simplesmente, como o Brasil tem um problema crônico de informatização, digitalização, equipe, tempo de aprovação e análise de dossiês tecnológicos, é preciso colocar um limite de prazo para que a agricultura brasileira não perca tempo”, afirma Lohbauer.

Maior parte dos registros envolve ingredientes ativos já existentes
Além de se posicionarem contra a desburocratização do processo de análise de novas moléculas para controle de pragas e doenças, os opositores do projeto professam um suposto “liberou geral” para o uso dos defensivos. E citam a aprovação de 562 produtos em 2021, sem explicar que 34% foram matéria prima destinada à indústria, 16,4% pesticidas biológicos, 47,5% pesticidas químicos desenvolvidos a partir de moléculas antigas e somente 2,1% pesticidas químicos desenvolvidos a partir de novas moléculas. Ou seja, grande parte dos “novos produtos” envolve o registro de genéricos, pequenas modificações em bulas e novas marcas comerciais de ingredientes ativos que, por vezes, já existem no mercado há vários anos.

O número que deve ser olhado, aponta Carbonari, é o dos ingredientes ativos novos. Em 2019, havia 29 desses ingredientes na fila dos órgãos reguladores no Brasil, dos quais 17 já estavam em uso nos Estados Unidos, 16 no Canadá, 15 na Austrália e 14 no Japão e na União Europeia. “Ou seja, a grande maioria desses produtos que estão em análise aqui, e de fato são novos produtos, já está em uso em muitos países desenvolvidos, com sistema regulatório rigoroso. E não quer dizer que os EUA estejam pleiteando o registro dos 29 produtos que estão na nossa fila, por que vários deles podem simplesmente não ser importantes para a agricultura americana ou europeia, mas podem ser muito importantes para o Brasil. A cana-de-açúcar, por exemplo, é uma demanda nossa”, completa Carbonari.

Num prazo de 16 anos (2006-2021) o Brasil aprovou apenas 51 novas moléculas de defesa vegetal na área química. A média de aprovação tem sido de 3,2 novas moléculas por ano. E quando chegam aqui já estão sendo utilizadas nos principais mercados concorrentes. Atualmente, segundo a Croplife, 28 moléculas aguardam avaliação do governo brasileiro.

Polarização apenas prejudica imagem do país
No artigo “A modernização da lei dos defensivos agrícolas é urgente”, publicado no Jornal da USP em março último, o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) José Otávio Menten, enfatizou a necessidade de um novo marco regulatório. “O conhecimento científico e o avanço tecnológico permitem afirmar que novos ingredientes químicos destinados ao combate das pragas agrícolas são sempre mais eficientes e trazem menores riscos ambientais e à saúde humana. (…) As divergências existentes a respeito do Projeto de Lei devem ser resolvidas com base na ciência, na tecnologia e no conhecimento. A intensa polarização somente prejudica a imagem do nosso país”.

E aquele discurso de que é preciso segurar a entrada de novos agroquímicos, em defesa da saúde dos brasileiros? Carbonari, da Unesp, sublinha que raciocínio deveria ser exatamente o contrário. “A indústria e a ciência dos defensivos tiveram um avanço muito significativo. Retardar o acesso a essas tecnologias, de maneira geral, só acarreta prejuízo no sentido de evoluirmos mais rápidos para produtos mais seguros”. Ele cita como exemplo o glifosato, herbicida mais utilizado no mundo. “Ele foi desenvolvido na década de 70. Na comparação com o que entrou no mercado a partir dos anos 2000, a redução da dose média é de 88%. Isso demonstra como esses produtos têm se tornado progressivamente mais seguros, com uma especificidade muito maior, que não têm impacto ambiental toxicológico maior, do ponto de vista do ser humano, da macro e da microfauna”.

Processo de aprovação de defensivos é semelhante ao dos remédios
Todo o processo de pesquisa, desenvolvimento e aprovação de defensivos guarda muitas similaridades com a produção de novos remédios. “De fato, são produtos que passam por sistemas de analises bastante rigorosos. No caso dos pesticidas, o processo regulatório é tão crítico como o uso do medicamento. E há similaridade inclusive na questão dos genéricos. Uma vez que passou pela aprovação, o produto está no mercado, é permitido o acesso àquele mesmo ingrediente ativo por meio de outras marcas comerciais. E ninguém vai usar mais ou menos porque tem mais marcas comerciais no mercado”, sublinha Carbonari, que é doutor em proteção de plantas e pós-doutor em pesquisa de manejo com produtos naturais.

Outra novidade da lei está no padrão para análise regulatória. Em vez do conceito de análise de perigo, entra a metodologia da análise de risco, como já acontece nos países de produção agrícola mais expressiva, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Argentina. “O perigo é subjetivo. Sair de carro de manhã para trabalhar envolve perigo. Se sair com o carro sem manutenção, pneu careca, sem carteira de habilitação ou embriagado, o risco é inaceitável. A lei não permite. Mas se estou com a manutenção em dia, tenho habilitação e dirijo na velocidade correta, o risco é calculado e aceitável. Isso deve estar muito claro e precisa ser seguido”, sublinha Carbonari.

Produto velho perde eficácia e sai mais caro para os produtores

Não será fácil o caminho para o PL 6.2999/2002 virar lei. O presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA), senador Jaques Wagner (PT-BA), declarou após aprovação pelos deputados que “se avançar no Senado como veio da Câmara Federal será um desastre do ponto de vista ambiental. Irá permitir que mais agrotóxicos cheguem à mesa dos brasileiros, além de promover o completo desmonte da regulação dos agrotóxicos no país”.

Lohbauer, da Cropscience, que é também cientista político e foi candidato a vice-presidente da República pelo Novo, em 2018, espera que a nova lei seja aprovada até julho. “Porque se não for, provavelmente no segundo semestre não será votado nada neste país. Não consigo ver quem tem interesse de manter a utilização de produto velho na agricultura. O produto velho, que é o que o PT promove quando fica com essa política antitecnologia, é produto que vai perdendo eficácia, e quando perde eficácia tem que usar mais. Além de ser mais caro para o produtor, a eficiência e produtividade são mais baixas. Então, não dá para entender a conta que esse pessoal faz, que não seja uma conta fantasiosa, ilusória, desviada do que significa a tecnologia no campo”.


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