Editorial
Gazeta do Povo
Deslizamentos de terra como o que causa sofrimento à população de Recife e Jaboatão dos Guararapes é um evento previsível por parte das prefeituras.| Foto: TV Brasil
De Petrópolis ao Recife, o roteiro da tragédia se repete. Em fevereiro, quase 250 pessoas morreram na cidade da região serrana do Rio de Janeiro, vítimas de enchentes e deslizamentos de terra. Na capital pernambucana, dias atrás, o mesmo cenário, com quase 130 mortos. Também em comum, o perfil de muitas das vítimas, que viviam nas chamadas “áreas de risco”, locais onde o excesso de chuvas costuma potencializar o desastre, seja pelo alagamento, seja porque os morros não oferecem a segurança necessária para as fundações das residências. E, a cada catástrofe, o Brasil se pergunta por que tantas mortes seguem acontecendo.
Ninguém vive em áreas de risco por opção. É ingênuo imaginar que esses brasileiros ignoram a possibilidade de uma enchente ou deslizamento. Se vivem nesses locais, é quase sempre por não terem outra escolha, fazendo um cálculo forçado de custo-benefício entre correr o risco de perder a vida em um desastre e simplesmente não ter um teto sob o qual morar. Em alguns casos, políticas de reassentamento mal formuladas ignoram que naquelas casas erguidas de forma precária estão investidas todas as economias de uma família, ou levam comunidades inteiras para locais distantes, privando-as de oportunidades de trabalho e meios de subsistência; nessas circunstâncias, não surpreende que haja quem resista à desocupação, ou que áreas onde houve a remoção voltem a ser habitadas em pouquíssimo tempo.
Há muito oportunismo político e ideológico que se beneficia da manutenção de brasileiros pobres em locais vulneráveis a tragédias
Há situações em que é possível reduzir bastante ou eliminar os riscos por meio de obras de saneamento básico, contenção de encostas e demais melhorias de infraestrutura. No entanto, em muitos outros casos não há outra saída a não ser a remoção, especialmente em áreas ambientalmente degradadas, onde os elementos naturais que garantiriam maior estabilidade ao terreno já se foram e não há como recuperá-los enquanto houver ocupação humana. Nestes casos, é dever do poder público elaborar políticas inteligentes de reassentamento, que incluam, por exemplo, o pagamento de indenizações adequadas, o aproveitamento de imóveis desocupados em regiões centrais, ou a construção de moradias em áreas novas que possam ser rapidamente integradas à cidade por meio de serviços públicos como transporte coletivo, saúde e educação.
Em ocasiões como essas, o jornalismo, cumprindo sua função de fiscal do poder público, costuma mostrar, usando os orçamentos e os dados sobre o uso dos recursos públicos, que muito raramente os governos aplicam integralmente o dinheiro previsto para a prevenção de desastres ou para que as pessoas que vivem em áreas de risco sejam realocadas em outros locais, com segurança. Esses gestores precisam, sim, ser chamados à responsabilidade – mas não apenas eles. Há muito oportunismo político e ideológico que se beneficia da manutenção de brasileiros pobres em locais vulneráveis a tragédias. Ativistas sociais, membros do MP, defensores públicos e até parlamentares se opõem a esforços legítimos de governos usando todo tipo de justificativa, de “respeito aos direitos humanos” à luta contra uma suposta “gentrificação” de áreas bem localizadas. Em um caso recente, a bancada do PSol na Câmara Municipal de São Paulo foi contrária a um projeto de lei que instituía um bônus a ser pago, além do valor de avaliação, a famílias que deixassem suas casas construídas em áreas de risco.
Enchentes provocadas por chuvas acima do normal são fenômenos que ocorrem até mesmo em países muito desenvolvidos – mas as vítimas, quando as há, são em número muito menor que em eventos similares ocorridos no Brasil, justamente porque há investimento não apenas na prevenção de desastres, mas também em políticas racionais de ocupação do solo. Com as tragédias se repetindo com triste frequência, é impossível alegar que o Brasil não sabe o que tem de ser feito, em que locais, de que forma e a que custo, para evitar mais mortes. Se elas continuam ocorrendo, é graças aos omissos e aos oportunistas, que têm nas mãos o sangue daqueles que foram levados pela água e pela lama.
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