Foto: Amanda Perobelli/Reuters
Por Beatriz Bulla e Luiz Vassallo
Novonor, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e UTC buscam revisar processos; acertos de natureza administrativa das construtoras somam R$ 8 bi, dos quais R$ 1 bi foi pago até agora
No auge da Lava Jato, acordos de leniência eram tratados nas empreiteiras alvo da operação como o único caminho para a sobrevivência. Agora, a expressão usada nas empresas para se referir aos contratos é outra: “bomba relógio”. Sob argumento de que estão em sérias dificuldades financeiras, empreiteiras que concordaram em pagar bilhões ao erário pelos desvios confessados tentam repactuar os débitos – seja em relação ao valor ou às condições de pagamento.
Segundo o Estadão apurou, Novonor (antiga Odebrecht), Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e UTC estão neste grupo. Segundo delatores da Lava Jato, ao lado da OAS, este grupo de empreiteiras formava uma espécie de “clube vip”, que se associava para fraudar licitações e superfaturar contratos.
As cinco concordaram em celebrar acordos de leniência bilionários com as autoridades públicas. Os acordos de natureza administrativa são uma espécie de delação premiada das pessoas jurídicas.
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“O que posso assegurar, como um observador privilegiado, seja pela condição de advogado ou docente, é que existe mais do que interesse, existe uma necessidade vital das empresas. Se não houver essa redefinição de valores estaremos assegurando o fim do instituto do acordo de leniência”, afirmou o advogado Sebastião Tojal, que foi responsável pelo acordo da Andrade Gutierrez e da UTC. Ele não quis comentar casos concretos.
As cinco leniências firmadas com a União somam R$ 8 bilhões, dos quais cerca de R$ 1 bilhão foi pago até hoje, segundo informações disponíveis no site da Controladoria-Geral da União (CGU).
Durante as apurações, os investigadores apostaram no estabelecimento de um valor alto, mas com pagamento prolongado. Em julho de 2018, a Odebrecht concordou em pagar R$ 2,72 bilhões pelos desvios confessados pela empresa e seus executivos. O montante foi parcelado em 22 prestações anuais. O modelo se repete com as demais empreiteiras, podendo chegar a 28 anos, no caso da OAS.
Argumentos
As empresas listam argumentos para defender a revisão dos acordos. Entre eles, a dificuldade em voltar a contratar com o poder público, somada à crise econômica agravada pela pandemia, que faz com que elas não tenham o fluxo de caixa imaginado quando fecharam os acordos. Ponderam ainda que o fim das grandes obras públicas e a recessão econômica no País derrubaram o investimento público e privado em infraestrutura desde 2014, quando chegou a R$ 188,5 bilhões. Em 2020, o valor foi de R$ 124,8 milhões, de acordo com a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). A história das empreiteiras nos últimos oito anos acumula casos de venda de ativos, recuperação judicial, demissões e dívidas bilionárias – incluindo as derivadas das multas e indenizações estabelecidas na Lava Jato.
Na visão das empresas, os acordos não resultaram na tranquilidade operacional esperada. Uma das principais queixas é em relação ao descompasso de ações de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU), CGU e Ministério Público Federal (MPF). Medidas desencontradas, segundo as empreiteiras, causaram mais insegurança e dificuldade de contratação com o poder público. Para o advogado de umas das construtoras, a empresa não pode assumir “uma obrigação que seja um suicídio”.
“Esses acordos buscam, de um lado, indenização. De outro, compromissos de integridade e, finalmente, informações a partir das quais a autoridade possa promover investigação”, observou Tojal.
“A indenização acabou por prevalecer sobre os demais objetivos. Salvar a instituição ‘acordo de leniência’ significa redefinir valores que possam ser pagos sob pena de a empresa não conseguir indenizar e deixar de cumprir as outras funções.” O advogado defende que haja uma definição política sobre a questão. A demora da via judicial, segundo ele, será fatal para as empresas.
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Conforme advogados, o debate sobre a repactuação dos acordos ganhou força nos escritórios que negociam em nome das empresas conforme as condições econômicas de cada uma delas se deterioram e o risco da inadimplência aumenta. A Lei Anticorrupção, que fundamenta os acordos de leniência, entrou em vigor no início de 2014. Desbaratada no mesmo ano, a Operação Lava Jato foi o primeiro e maior teste para o instrumento desde então.
A série de derrotas sofridas pela Lava Jato no ano passado contribui para a insatisfação das empresas com a multa acordada. “Muitos desses acordos consideraram fatos ilícitos à época de sua celebração, que foram considerados lícitos ou de menor gravidade posteriormente em processos penais. A empresa assumiu pagar uma reparação por algo que depois não foi considerado um dano ou foi considerado um dano menor”, disse o advogado Walfrido Warde, presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IRREE).
Prazos
Algumas empresas buscam mudar a forma de pagamento e esticar prazos. Outras tentam diminuir o valor acordado, um caminho considerado mais difícil, conforme a maior parte dos advogados ouvidos pelo Estadão. Segundo pessoas que acompanham o caso da Odebrecht, o pedido da empresa é para conseguir um alívio nas prestações devidas até 2025. A partir daí, assumiria valores mais altos para honrar o montante total acordado. O ano de 2025 é também o compreendido no plano de recuperação judicial do grupo, que tinha quase R$ 100 bilhões em dívidas.
As manifestações de empresas com pedido para alterar as condições da leniência correm em sigilo. Advogados tentam negociar diretamente na CGU, que passou a centralizar a atuação sobre leniência. Tojal, único dos advogados de empreiteiras consultados que aceitou falar publicamente sobre o tema, nega que a diminuição de valores signifique que o Estado não será ressarcido por danos causados por corrupção.
Empresas negociam repactuação com CGU e Procuradoria no Paraná
A Controladoria-Geral da União (CGU) confirmou que há solicitações de empresas relacionadas às obrigações financeiras nos acordos de leniência, mas não comentou os casos em andamento. Segundo a pasta, os valores são definidos “a partir de análise técnica dos critérios previstos no ordenamento jurídico, estando diretamente relacionados aos ilícitos reconhecidos pelas empresas colaboradoras”.
Dessa forma, a CGU destaca que “não há possibilidade de alteração dos valores previamente pactuados, exceto em situações excepcionais previstas nos próprios instrumentos negociais, a exemplo de ampliação do escopo”.
Ao Estadão, o Ministério Público Federal (MPF) no Paraná afirmou que duas empreiteiras “estão em processo de repactuação”. Segundo o órgão, uma delas é a Novonor, antiga Odebrecht, e a outra é a Andrade Gutierrez. A primeira, conforme o MPF, está em “processo de repactuação para cumprimento integral do inicialmente acordado”. Já a Andrade Gutierrez está “fazendo o reperfilamento da dívida”.
Não há possibilidade de alteração dos valores previamente pactuados, exceto em situações excepcionais previstas nos próprios instrumentos negociais
Controladoria-Geral da União (CGU)
Segundo dados da CGU, desde 2015 foram celebrados acordos de leniência de R$ 15,6 bilhões (nem todos no âmbito da Lava Jato), dos quais cerca de R$ 6 bilhões já foram pagos. No ano passado, procuradores da Lava Jato afirmaram que quase metade dos R$ 12,6 bilhões previstos em leniências foi paga. O MPF não discriminou os valores. Há casos de empresas que assinaram leniência só com um dos órgãos.
Greenfield
A J&F, holding da alimentícia JBS, foi uma das primeiras empresas a partir para o caminho da revisão, que vai além da redefinição de valores ou condições pleiteadas pelas empreiteiras. O grupo dono da JBS argumenta que o valor foi estabelecido totalmente fora dos parâmetros previstos em lei. A empresa diz que erros jurídicos e de cálculo levaram o MPF a chegar aos R$ 10,3 bilhões previstos para devolução, no acordo assinado em 2017 no âmbito da operação Greenfield. A defesa pede à Justiça para que o valor pago seja reduzido para R$ 3,6 bilhões. Até agora, não houve acordo ou decisão conclusiva sobre o pedido na Justiça.
‘Adimplência’
A Andrade Gutierrez não quis comentar o assunto. A Camargo Corrêa afirmou que está “em situação de adimplência” em relação aos acordos firmados no âmbito da Lava Jato. “Isso inclui as obrigações financeiras, o compromisso de colaboração constante e de melhorias na governança e no compliance”, respondeu a empresa.
A Novonor afirmou que “a empresa respeita e cumpre os acordos de leniência firmados e reforça que estes acordos são sigilosos”. A UTC não havia respondido até a conclusão desta edição.
Delação de executivos implicou classe política
Os acordos de leniência foram homologados pela Justiça Federal do Paraná entre 2015 e 2017 e firmados no momento em que executivos de empreiteiras, presos pela Lava Jato, fizeram delação premiada, implicando políticos de diversos partidos. Uma das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no caso Sítio de Atibaia, teve como base a delação premiada e provas do acordos de leniência da Odebrecht.