CPI do Sertanejo
Por
David Ágape, especial para a Gazeta do Povo
Caetano Veloso participa, no dia 23 de outubro de 2018, de um evento de campanha do então candidato à presidência Fernando Haddad, com Guilherme Boulos ao fundo: cachê de R$ 715 mil no réveillon de Fortaleza em 2010| Foto: EFE/Antonio Lacerda
“Estamos aqui em Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia. Nós somos artistas que não dependem de Lei Rouanet. Nós não precisamos fazer tatuagem no ‘t*ba’ para mostrar se a gente está bem ou não”, disse o cantor sertanejo Zé Neto, durante o show em Sorriso, em 13 de maio deste ano.
O comentário de Zé Neto criticando a Lei Rouanet e zombando da tatuagem íntima feita por Anitta gerou uma onda de revolta após o jornalista Demétrio Vecchioli revelar, no dia seguinte à apresentação, que ela custou R$ 400 mil e foi paga pela prefeitura da cidade. Além disso, diversas prefeituras de pequenas cidades teriam contratado shows da dupla Zé Neto e Cristiano sem licitação. Outros artistas sertanejos também fariam o mesmo, aproveitando festivais do agronegócio que acontecem por todo o interior do país.
A dupla sertaneja foi acusada de hipocrisia por atacar a Lei Rouanet, que exige prestação de contas para captação de recursos, ao mesmo tempo que realiza diversos shows pagos por prefeituras por meio de contratos sem licitação, com menor controle da utilização de recursos. Assim, nas redes sociais, fãs de Anitta e ativistas de esquerda amplificaram as críticas e pediram a instalação de uma “CPI do Sertanejo”, iniciando uma caça às bruxas a cantores sertanejos que façam shows pagos por prefeituras.
O cantor Gusttavo Lima, que assim como Zé Neto é apoiador declarado do presidente Jair Bolsonaro (PL) foi acusado por blogs de esquerda de ter a carreira financiada por um fundo de investimentos que teria pego R$ 320 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que ele fizesse propaganda para Bolsonaro, algo que depois foi desmentido até por agências de checagem.
Após denúncias crescentes nas redes sociais, Ministérios Públicos Estaduais abriram investigação para apurar possíveis irregularidades na contratação de shows de Gusttavo Lima por prefeituras. Em Roraima, o Ministério Público abriu investigação sobre o show que seria realizado pelo cantor na pequena cidade de São Luiz (RR), distante cerca de 310 km da capital Boa Vista. O cachê, fixado em R$ 800 mil, estaria muito além do suportado pelo município de apenas 8,2 mil pessoas.
Em Minas Gerais, o show do cantor e de outros artistas, que seria realizado na cidade de Conceição do Mato Dentro, foi cancelado pelo Ministério Público na segunda-feira (30), com a justificativa de que o dinheiro deveria ser usado apenas em investimentos para educação, saúde e infraestrutura. No mesmo dia, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) abriu inquérito para apurar irregularidades na contratação de Gusttavo Lima para um show em Magé, por um cachê de R$ 1 milhão — o valor seria dez vezes maior do que a prefeitura deve investir em atividades culturais e artísticas durante todo o ano.
A prefeitura de Conceição do Mato Dentro se justificou dizendo que os processos licitatórios para a contratação de Gusttavo Lima e os outros artistas “foram realizados dentro da legalidade” e que era previsto retorno de mais de R$ 21 milhões com a chegada de turistas para as atrações. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o prefeito da cidade, Zé Fernando (MDB), afirmou que a festa “foi envolvida em uma guerra político-partidária, que nada tem a ver com a cidade”.
Gusttavo Lima, em uma live no Instagram feita no dia 30 de maio, disse estar sendo alvo de uma perseguição e que está a ponto de jogar a toalha. Disse também que faz shows pagos por prefeituras, como “todos os artistas fazem”, mas que não deixará de cobrar o seu preço porque o pagamento seria uma forma de valorização de sua arte e de pagar as despesas da equipe que o acompanha.
A assessoria de Lima justificou que o valor do cachê do artista é fixado obedecendo critérios internos, baseados no cenário nacional, como: logística, tipo do evento, e custos e despesas operacionais da empresa para realização do show. Informou também que não pactua com ilegalidades cometidas por representantes do poder público, seja em qualquer esfera e que toda contratação do artista por entes públicos federados são pautados na legalidade, ou seja, de acordo com o que determina a lei de licitações.
Para o humorista Danilo Gentili, isto só acontece porque Gusttavo Lima apoia Bolsonaro, pois se ele “tirasse fotos apoiando Marcelo Freixo, candidato ao governo do Rio de Janeiro pelo Psol, e votasse em Lula, a mídia estaria “passando pano”.
“Estaríamos lendo no UOL hoje mesmo ‘como o dinheiro de prefeituras em shows gera renda e fomenta a economia local’. Aqui no Brasil tudo depende do lado que você está”, escreveu Gentili no Twitter.
Especialistas consultados pela Gazeta do Povo esclarecem que contratos feitos sem licitação, para contratação de artistas consagrados, é normal, e está amparada pela Constituição. Além disso, no caso de ilegalidades na contratação de artistas caberá aos gestores públicos a responsabilização, não aos contratados.
Telhado de vidro
Contratos firmados com prefeituras não são exclusividade de cantores sertanejos, e shows com artistas com visão política de esquerda pagos por prefeituras são frequentes. Também não são novidade os cancelamentos de apresentações a pedido da justiça.
Um caso recente é a Virada Cultural, evento que ocorreu no último dia 29 de maio, na capital de São Paulo, que custou R$ 20 milhões à prefeitura. Diversos artistas se manifestaram contra Bolsonaro e a favor de Lula durante as apresentações. O vereador Fernando Holiday (Novo) entrou na Justiça pedindo que seja suspenso o cachê da cantora Ludmilla, que receberia R$ 222 mil pelo show em que pediu para que o público fizesse um “L” com a mão, gesto que é associado ao ex-presidente Lula (PT). Ludmilla, no entanto, debochou do parlamentar no Twitter dizendo: “Deixa eu contar um segredo: meu nome também começa com a letra L!”.
O rapper Don L fez o mesmo durante a sua apresentação, em que pediu para o público fazer um “L” com a mão declarando: “se não tivéssemos um presidente genocida, muito mais pessoas estariam com a gente”. Na mesma apresentação, o funkeiro Hariel pediu para que o público” não vendesse seu voto para criminoso” e “tirasse aquele homem de lá”.
Já o cantor Marcelo D2, da banda Planet Hemp, convocou quem se identificasse como antifascista na plateia a entoar gritos de “Marielle presente”. No mesmo show, o cantor João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, entrou no palco gritando “fora, Bolsonaro” e após cantar perguntou se alguém ali tinha um cigarro de maconha.
O cachê de Ludmilla está mantido, até o momento, mas os R$ 100 mil que a cantora de axé Daniela Mercury receberia por um show realizado na cidade de São Paulo, em comemoração ao 1º de Maio, foi cancelado após ela se tornar alvo de investigação da Controladoria-Geral do município. A baiana, que durante a apresentação segurou uma bandeira com o rosto de Lula e puxou um coro em favor do petista, jurou nunca ter recebido dinheiro público, durante show pago por emendas parlamentares, a maioria do PT.
Além da realização de showmício, que é vetado pela legislação eleitoral, bem como a político-partidária antecipada, a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público do Ministério Público iniciou apuração uma possível violação de princípios da administração pública, como moralidade e impessoalidade. E não foi a primeira vez que Daniela Mercury se envolveu com problemas com a sua contratação por uma prefeitura. Em 2011 a baiana foi convidada para cantar no aniversário de 285 anos da cidade de Fortaleza, na época administrada pela petista Luizianne Lins, então detentora do título de prefeita pior avaliada do país, segundo o Datafolha.
O show de Daniela Mercury, de quem Luizianne é fã, custou R$ 385 mil, valor maior do que a prefeitura devia a um dos principais fornecedores de material cirúrgico da rede de saúde municipal. Por falta de pagamento, chegaram a ser suspensas as entregas de materiais dias antes. “Ela pagou para o povo pular e beber cachaça em vez de cumprir suas obrigações com a saúde”, disse José Frota Neto, um dos credores, à revista Veja.
Luizianne também se enrolou em 2007 com a comemoração do réveillon da cidade. Na prestação de contas, foi declarado que foi pago R$ 490 mil para a cantora Elba Ramalho e R$ 150 mil para a cantora Tânia Mara. As assessorias das duas cantoras disseram, no entanto, que Elba recebeu R$ 100 mil e Tânia Mara cantou de graça. A administração à época justificou que os valores foram para todas as despesas do show e não somente para a cantora paraibana.
Luizianne declarou ter pago R$ 715 mil reais de cachê a Caetano Veloso, na comemoração do réveillon de 2010, e alegou que este valor deveria cobrir passagens, diárias e o transporte de equipamentos dos músicos de apoio que acompanhariam o cantor. O detalhe: Caetano fez um show solo, somente com voz e violão. Para a revista Veja, o cantor disse que a prefeitura cobriu gastos que ele não fez e nem sequer cobrou. Em ambos os casos ninguém foi condenado e Luizianne agora é deputada federal pelo Ceará.
Sobrepreço nos cachês
O cantor paraibano Chico César — petista que participou da nova versão do jingle de Lula, originalmente gravado na campanha presidencial de 1989, junto de outros cantores de esquerda como Martinho da Vila, Lenine, Maria Rita, Pabllo Vittar e Otto — em dezembro de 2021 foi contratado para um show que custaria R$ 90 mil ao estado do Rio Grande do Norte. A apresentação acabou não sendo realizada porque o cantor testou positivo para a Covid-19. O Rio Grande do Norte é governado pela petista Fátima Bezerra. O valor de R$ 90 mil é superior a outros shows realizados anteriormente pelo cantor. No Rio Grande do Sul, em 2021, um show do cantor custou R$ 35 mil; em 2017 uma apresentação em Lagoa Santa, Minas Gerais, custou R$ 45 mil.
Em resposta a estes questionamentos, a Fundação José Augusto, que contratou o show do cantor para a reabertura do Forte dos Reis Magos, comunicou que o cachê cobrado estava “de acordo com os valores praticados no mercado nacional por artistas de renome no período festivo”. Além disso, informou que não são cabíveis comparações com cachês cobrados pelo músico em períodos anteriores.
Anitta
Justificativa semelhante foi feita pela prefeitura de Itaguaí (RJ), que foi proibida pela justiça de realizar shows de Anitta, Luan Santana e Alexandre Pires nas comemorações de 200 anos da cidade.
O evento, que custaria R$ 6,2 milhões entre cachês de artistas e serviços de infraestrutura, foi questionado pelo Ministério Público por seu alto valor e a antecipação de metade dos cachês pela prefeitura do município, que estaria passando por um momento crítico na saúde e educação, com o fechamento de escolas e do principal hospital da cidade por falta de recursos. A prefeitura, no entanto, lamentou o cancelamento pois este evento “geraria emprego, renda para o comércio local e turismo”.
Situação parecida ocorreu em 2019, quando a cidade amazonense de Parintins foi questionada pelo Ministério Público do estado pela contratação de um show de Anitta para a tradicional festa dos bois Caprichoso e Garantido, por R$ 500 mil, o dobro dos valores normalmente praticados pela artista. Para o MP, além da questão do suposto superfaturamento no cachê, o dinheiro poderia ter melhor uso, como a descontaminação da água em Parintins. Na época, o estado acabava de sair de uma greve de professores de mais de 40 dias, que reivindicavam melhores salários.
A prefeitura argumentou na ocasião que a quantia se justificava devido à logística do município: uma ilha em meio ao rio Amazonas, sem acesso por terra e a 370 km de Manaus. Além disso, o valor retornaria para a cidade com o fomento ao turismo. Mesmo assim, o prefeito Frank Bi Garcia (UNIÃO), decidiu cancelar o show de Anitta devido à repercussão negativa.
Segundo levantamento do Departamento de Estatística da Empresa Estadual de Turismo do Amazonas, de 2005 a 2018, o Festival Folclórico de Parintins atraiu quase 700 mil turistas, injetando cerca de R$ 426 milhões na cidade em todos estes anos. Apenas em 2018, cuja apresentação de Zé Neto e Cristiano também foi questionada pelo MP estadual, o festival teria movimentado R$ 80 milhões, um resultado “fantástico” para o prefeito Garcia, por ter atraído investimentos do governo estadual, federal e da iniciativa privada.
Contratação normal
Segundo Mário Saadi, doutor em Direito Administrativo pela USP e sócio da Cescon Barrieu Advogados, onde é responsável pelas áreas de infraestrutura e direito administrativo, a contratação sem licitação não é anormal e está amparada pelo artigo 37, inciso XIX, da Constituição Federal e respaldada pela Nova Lei de Licitações, sancionada em abril de 2021. Esta prevê a “inexigibilidade de licitação” contratação direta, sem procedimento licitatório prévio, para contratação de profissional do setor artístico, diretamente ou por meio de empresário exclusivo, desde que este seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Segundo ele, os órgãos de controle e os cidadãos, de maneira geral, podem fiscalizar os atos tomados pela administração pública. Assim, em caso de constatação de eventuais irregularidades, podem ser realizadas investigações e a abertura de processos pertinentes; e sempre haverá o direito de a administração pública se defender e demonstrar as razões pelas quais a sua decisão foi tomada.
“Os casos em discussão demonstram que deve haver cuidado jurídico em qualquer contratação realizada pela administração pública. Há regras específicas que precisam ser observadas relativamente a todo e qualquer contrato. Há necessidade de ação diligente, por todos os envolvidos”, explica.
Gustavo Schiefler, doutor em Direito do Estado, explica que a “inexigibilidade de licitação” ocorre pois prevalece o entendimento de que não haveria como comparar as propostas de diferentes artistas consagrados a partir de parâmetros objetivos. Assim, o fato de não acontecer uma competição aberta para a escolha do artista a ser contratado é normal neste tipo de situação pois não haveria como concluir qual é a melhor contratação a partir de uma suposta comparação, por exemplo, entre os cachês, as discografias, o número de shows realizados, o número de fãs ou seguidores nas redes sociais, ou de visualizações no Youtube.
“Se houver interesse público na contratação de um artista consagrado, a escolha deste artista será discricionária: o gestor público avaliará as alternativas disponíveis e, pagando o preço de mercado, escolherá motivadamente aquele artista que se mostrar mais adequado para o evento”, diz.
Schiefler esclarece que pode haver, sim, ilegalidade nestes contratos: como ausência de uma motivação adequada para a contratação ou o eventual pagamento de um preço superior ao preço praticado em situações semelhantes, pelo mesmo artista, no mercado em geral. Neste último caso, haveria o chamado de “sobrepreço”.
Outra possível ilegalidade seria a falta de documentação, por escrito, no processo administrativo: dos interesses públicos que serão atingidos com o espetáculo; a justificativa do preço a ser pago; a comprovação da existência e da suficiência da dotação orçamentária; a descrição da razão da escolha deste artista; e de um parecer jurídico favorável do procurador público.
Estas ilegalidades podem gerar intervenção das autoridades públicas, embora sejam exceção, explica Schiefler. Esta intervenção poderia ocorrer por ausência de dotação orçamentária para a contratação, por conta de desvios de finalidade e fraudes. Mas em regra compete ao gestor público tomar as decisões sobre a melhor forma de alocar os recursos públicos disponíveis, e não ao Poder Judiciário ou ao Tribunal de Contas. Ele ressalta que, embora o gestor público tenha liberdade para escolher como aplicar os recursos públicos, também está vinculado ao orçamento, conforme aprovado pelo Poder Legislativo.
No caso de dotações orçamentárias vinculadas, ou seja, “carimbadas” para uso em contratações de determinada natureza, a sua utilização indevida, em outro tipo de contratação, provavelmente configura uma ilegalidade. Estas ilegalidades, entretanto, são atribuíveis ordinariamente aos gestores públicos, não aos artistas contratados.
“O artista não é e não pode ser responsável por fiscalizar e confirmar a legalidade do processo de contratação. Ele só poderá ser responsabilizado se houver alguma participação indevida no processo, ou seja, se cruzar a linha e praticar alguma influência ilegítima sobre as decisões tomadas pela Administração”, afirma Schiefler, que acrescenta que cada caso deve ser analisado individualmente, pois existem situações em que o remanejamento de verbas pode ocorrer dentro da legalidade.
De acordo com Schiefler, se tudo isso estiver bem fundamentado em um processo administrativo, não haverá ilegalidade; mas a questão não é exatamente de natureza jurídica, mas de gestão administrativa, orçamentária e política. Desta forma, o gestor público, eleito pela população, é o responsável primário por realizar o juízo de pertinência e adequação de contratações como estas, embora seja juridicamente possível que um gasto público significativo afete outras exigências relevantes das políticas públicas sob sua responsabilidade.
O advogado explica também que os cálculos sobre retornos dos valores investidos com turismo são feitos através de amostragem, a partir de presunções que levam em conta eventos semelhantes passados. Schiefler esclarece que este tipo de avaliação é complexa e não há uma metodologia inteiramente segura, ou única, para se comparar o retorno de um investimento desses com outros cenários hipotéticos, em que o dinheiro seria usado de outra maneira. Mas no caso de um show de envergadura nacional, que ocorra em uma região em que esses eventos são raros, Schiefler acredita ser provável que gere retorno na área de comércio e de serviços da cidade, dada o efeito de atração de pessoas do entorno.
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