Repercussão internacional

Por
Luis Kawaguti – Gazeta do Povo

Santarem Novo (PA) pescador do carangueijo as margens do Rio Maracanã que é o principal acidente hidrográfico do município. É o rio que separa Santarém Novo do município de Maracanã


| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Os recentes assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira reacenderam o debate sobre os problemas da Amazônia. A dupla lutava para denunciar problemas reais da região do Vale do Javari, como pesca, garimpo e exploração de madeira ilegais, além da intimidação de indígenas por criminosos. Mas o que é real e o que é guerra de informação nesse debate?

A coluna Jogos de Guerra faz uma pausa nesta semana na cobertura da guerra na Ucrânia – que continua intensa – para trazer uma análise de cenário atualizada sob o ponto de vista da defesa da Amazônia.

Analistas militares identificam ao menos duas principais ameaças à região: a formação das chamadas “zonas cinzentas”, onde a baixa presença do Estado possibilita a ação praticamente livre de criminosos, e os esforços de outras nações para impedir que o Brasil explore as riquezas naturais presentes em seu território.

Veja abaixo alguns dos aspectos sensíveis da região a partir dos pontos de vista social, tecnológico, ambiental, político, econômico e de regulação.

Falta de desenvolvimento e crime
Após o fim do último ciclo da borracha, em 1945, a estagnação econômica fez milhares de migrantes e seus descendentes procurarem novas formas de se manter. Eles formam hoje boa parte da chamada população ribeirinha. Alguns se dedicam a atividades não legalizadas, como pesca em larga escala ou de espécies protegidas, caça, extração de madeira e garimpo.

Apesar de muitos terem mesclado suas famílias com a população nativa, o conflito de interesses entre esse segmento da população e os povos indígenas começou a ficar em maior evidência com a demarcação de terras indígenas a partir da década de 1960. Muitos ribeirinhos tiveram que se mudar para fora das reservas, mas continuaram voltando a elas irregularmente para explorar recursos naturais, causando choques eventuais.

A região Norte do país abriga a maior parte da Amazônia brasileira e se estende por quase 4 milhões de quilômetros quadrados. São distâncias imensas, que encarecem qualquer tipo de operação, desde fiscalização a fornecimento de serviços básicos. É o chamado “custo Amazônia”. Some-se a isso o fato de a região abrigar menos de 10% do eleitorado brasileiro e o resultado é a falta histórica de investimentos em políticas de desenvolvimento social e exploração sustentável dos recursos naturais – o que acirra a tensão social.

Mas essa não é a única causa de conflitos e do surgimento das “zonas cinzentas”. O crime organizado vem crescendo na região, com grandes quadrilhas operando tráfico de drogas, garimpo, grilagem de terras e extração de madeira ilegal.

As lideranças desses grupos criminosos e boa parte de seus “soldados” não estão na selva, mas em cidades como Manaus, Belém ou capitais do Sudeste do país.

A presença de narcotraficantes, por exemplo, se tornou evidente a partir de 2016. Na época, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) assassinou o chefe do tráfico no Paraguai, Jorge Rafaat, e assumiu o controle da rota que leva drogas dos países andinos para a Europa e para o mercado nacional através das regiões Sudeste e Sul do Brasil.

A facção rival Comando Vermelho (CV) passou a explorar uma rota secundária, que traz ao Brasil a cocaína produzida no Peru, na Bolívia e na Colômbia por meio dos rios amazônicos. Eles entraram em confronto direto com a facção criminosa local Família do Norte (FDN) – o que gerou em capitais como Manaus níveis de violência similares aos produzidos pelas “guerras” de quadrilhas nas favelas do Rio de Janeiro.

Além disso, organizações criminosas especializadas em tráfico de ouro e pedras preciosas operam na região subornando policiais e autoridades públicas. Exploradores de madeiras nobres possuem conexões que possibilitam a venda ilegal em países como Holanda, Bélgica e França.

Ou seja, em casos como esses, o investimento em políticas sociais ajuda, mas não resolve o problema. Mas então como enfrentar isso?

O Rio de Janeiro, que enfrenta problema similar, conseguiu avançar temporariamente no combate ao crime organizado quando passou por uma intervenção federal. Ela adotou políticas públicas impopulares que reformularam, treinaram e equiparam as polícias, além de diminuir momentaneamente a influência de políticos corruptos sobre operações policiais.

A esperança do Sisfron

Do ponto de vista tecnológico, a maior aposta do governo brasileiro na defesa da Amazônia é um programa estratégico do Exército chamado Sisfron, o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras. Seu objetivo é criar um sistema de vigilância para monitorar 16.886 quilômetros de fronteiras em uma faixa de 150 quilômetros de largura dentro do território brasileiro. Ele prevê sistemas de radares, sensores, softwares e equipamentos de comunicação que integrem as ações das Forças Armadas às das polícias e dos órgãos de fiscalização.

A movimentação de materiais ilícitos na região se dá principalmente por meio de embarcações em rios ou por via aérea em pequenos aviões. Até para os criminosos é praticamente impossível operar apenas por meio de deslocamento terrestre na mata fechada. A ideia do Sisfron é possibilitar a interceptação principalmente de aviões e barcos suspeitos logo que entrem ou tentem deixar o território brasileiro.

Em vez de comprar toda a tecnologia de empresas estrangeiras, a ideia do governo é desenvolver o Sisfron na Embraer, em uma tentativa do país fortalecer sua Base Industrial de Defesa.

O problema é que faltou dinheiro para colocar o programa em prática. Ele foi criado em 2009, mas até agora só existe como projeto piloto na região do Mato Grosso. Seu custo total aproximado seria de R$ 12 bilhões, com previsão de investimento anual de R$ 1,2 bilhão em dez anos. Em 2021, a verba destinada ao programa foi de menos de R$ 800 milhões.

Ou seja, o projeto está atrasado e fontes do governo se justificam dizendo que foi preciso deixar de lado investimentos em defesa para dar atenção a questões emergenciais, como o socorro da população durante a pandemia e a crise econômica.

O programa entrou neste ano na segunda fase, com o início da parceria com a Embraer, mas não é possível prever com exatidão quando estará totalmente em operação.

Floresta intocada ou exploração sustentável
Sob o ângulo ambiental, a proteção da Amazônia costuma ser discutida em meio ao esforço pela redução das emissões de carbono globais. A meta mundial é reduzir as emissões a fim de limitar a elevação de temperatura do planeta a 1,5 ºC acima do patamar pré-industrial até o ano de 2050.

É senso comum que as florestas são capazes de capturar dióxido de carbono da atmosfera, transformando-o em tecido vegetal ou acumulando-o no solo. Quando parte de uma floresta é desmatada, esse carbono volta para a atmosfera.

Assim, por causa das queimadas, oito dos dez municípios brasileiros que mais emitem gases causadores do efeito estufa estão na Amazônia, segundo estudo divulgado nesta semana pelo Observatório do Clima, uma rede de entidades e ONGs. Assim, segundo o estudo, extensos municípios amazônicos com muitas queimadas poluiriam o ar tanto quanto grandes cidades com muitos carros e fábricas, como São Paulo e Rio de Janeiro.

A Floresta Amazônica tem hoje cerca de 334 milhões de hectares e corresponde a 5% da superfície terrestre, segundo o IBGE. Entre 2020 e 2021, a floresta teria perdido 1,3 milhão de hectares. Foi um aumento de 22% em relação ao ano anterior, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O Brasil também não é o país que têm mais florestas no mundo. A Rússia fica em primeiro lugar, com 815 milhões de hectares e o Brasil em segundo, com 496 milhões de hectares, segundo a FAO, a Organização da ONU de Comida e Agricultura.

Assim, o conceito de que a Amazônia seria o “pulmão do mundo” está mais relacionado a peças de propaganda do que a dados científicos. Até porque os conceitos mais modernos mostram que os mares são mais capazes de absorver carbono que as florestas. Ou seja, a Amazônia está longe de determinar sozinha o futuro do aquecimento global.

Mas a proteção da Amazônia também tem que ser encarada do ponto de vista da preservação da biodiversidade, manutenção dos recursos hídricos e sustento dos povos nativos. Isso parece consenso na sociedade brasileira.

A divergência ocorre em como fazer isso. Em linhas gerais, uma corrente defende que a mata seja mantida intocada, por meio de parques e reservas indígenas. Outra defende a exploração da floresta por meio de um manejo sustentável dentro das leis – que, embora gere alguma perda ambiental, torna possível a sustentabilidade econômica e o desenvolvimento da região.

Internacionalização da Amazônia

Sob o aspecto político, uma das principais preocupações no campo da defesa nacional é a possibilidade de internacionalização parcial ou total da Amazônia por iniciativa de países estrangeiros – sob o argumento da preservação ambiental ou da autodeterminação de povos indígenas.

Desde a consolidação das relações diplomáticas do Brasil com a Argentina, na década de 1980, um grande número de tropas que eram mantidas no Sul do país foi transferido para a Amazônia.

Uma invasão militar por uma potência mundial é muito remota na conjuntura atual. Os Estados Unidos, seus aliados europeus, a Rússia e a China têm preocupações geoestratégicas muito mais urgentes, como a guerra na Ucrânia e a elevação das tensões no Indo-Pacífico. Mas se ocorresse uma invasão dessa natureza, a estratégia do Brasil seria adotar uma postura de resistência – com técnicas de combate irregular ou guerrilha.

Uma ação de contestação de território por uma nação vizinha também é considerada pouco provável. Nesse caso, o Brasil tentaria repelir o invasor usando uma estratégia de guerra regular – com aviões, carros de combate, artilharia e navios.

Assim, embora uma ação militar contra a Amazônia seja altamente improvável, autoridades da área da defesa não descartam ações realizadas “abaixo da linha da guerra” por nações específicas. Elas teriam o objetivo de obtenção de vantagens econômicas ou de dificultar ao Brasil o uso de seus recursos naturais.

Um dos primeiros passos seria o uso da guerra da informação para difundir a ideia de que o Brasil não é capaz de preservar a biodiversidade ou os direitos dos povos nativos da região amazônica. Outro conceito difundido seria o de que a região é um patrimônio mundial – e não apenas brasileiro. Alguns analistas argumentam que esse tipo de ação já é feito por meio da ação de ONGs, ativistas e políticos.

Por exemplo, casos como as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira têm sido usados politicamente por ativistas para tentar relacionar o crime à retórica do governo de defender a regularização de garimpos em áreas indígenas ou a uma suposta falta de investimentos em órgãos de fiscalização – que o governo nega.

Sanções contra o agronegócio

Sob a perspectiva econômica, é possível focar a análise de cenário na tentativa de atores europeus, como, por exemplo, o presidente francês Emmanuel Macron, de deslegitimar o agronegócio brasileiro. O argumento é que as atividades agropecuárias estariam se expandindo em detrimento da preservação ambiental da Amazônia. Segundo analistas, essa seria uma tentativa de diminuir a competitividade do setor internacionalmente.

No pior cenário, esse processo poderia levar a boicotes de produtos brasileiros e até sanções características da guerra econômica. Porém, a crise mundial de fertilizantes e a guerra na Ucrânia mudam esse cálculo.

A escassez de fertilizantes pré-guerra e o atual bloqueio do Mar Negro pela esquadra russa (que impede a exportação de alimentos da Ucrânia, um dos maiores produtores de grãos do mundo) estão levando a uma crise mundial de alimentos.

A alta dos preços já se reflete em todo o mundo e a possibilidade de fome em países mais pobres é cada vez maior. Diante desse cenário, os EUA e seus aliados já suspenderam as sanções contra a exportação de fertilizantes russos e dificilmente se mobilizariam para sancionar exportações brasileiras de alimentos.

Insegurança jurídica
Do ponto de vista regulatório, a insegurança jurídica cada vez mais intensa no Brasil e pressões políticas regionais contra a aprovação de projetos de infraestrutura vêm impedindo o desenvolvimento da região amazônica.

Ferrovias, rodovias e portos não saem do papel devido a intermináveis processos jurídicos, ora motivados por preocupações ambientais, ora por interesses políticos. Exemplos clássicos são a restauração da rodovia BR-319, que ligava Manaus a Porto Velho, e a ferrovia Ferrogrão, que ligaria o Centro-Oeste ao Pará, mas teve sua construção suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse tipo de insegurança jurídica não só atrasa ou impossibilita o desenvolvimento da região amazônica, como dificulta a atração de recursos de investimentos internacionais.

Outro problema é a questão fundiária, que dificulta o desenvolvimento não só na Amazônia. As incertezas sobre títulos de propriedade de terras e a lentidão da Justiça facilitam a ação de grileiros, posseiros e grupos criminosos que atuam com a comercialização ilegal de propriedades rurais.

Possibilidades de mitigação
Há maneiras de reduzir parte dos problemas amazônicos em um prazo não tão longo. Entre elas, estão o desenvolvimento de tecnologia nacional e o investimento nos órgãos de segurança e fiscalização.

Ações diplomáticas, como o fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que envolve os países amazônicos Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, podem diminuir os riscos políticos para a região.

Ações mais complexas de desenvolvimento sustentável e regulamentação devem levar mais tempo para serem colocadas em prática, mas ao menos precisam começar a ser discutidas agora pela população.

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