Editorial
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Gazeta do Povo


Supermercado em Buenos Aires: preços ao consumidor acumularam alta de 29,3% de janeiro a maio deste ano.| Foto: EFE/Juan Ignacio Roncoroni

O recente surto inflacionário observado em várias economias desenvolvidas e emergentes tem muitas causas comuns, como os choques nas cadeias produtivas causados pelos persistentes lockdowns chineses, o caos no mercado de commodities provocado pela agressão russa na Ucrânia, e o rescaldo da forte emissão de moeda com que muitos países responderam à devastação econômica da pandemia de Covid-19. Mas cada nação tem particularidades que podem potencializar ou mitigar a pressão altista sobre os preços. A Argentina é um caso peculiar de circunstâncias locais que agravam o efeito global; o país passa por um calvário que, na América do Sul, só é superado pela devastação econômica do “socialismo do século 21” bolivariano na Venezuela.

Com uma inflação de 5,1% em maio, o acumulado dos últimos 12 meses na Argentina chegou a 60,7%, o pior índice dos últimos 30 anos, superando os 58% do acumulado registrado em abril. E, apesar da desaceleração – a inflação tinha sido de 6% em abril e 6,7% em março –, as perspectivas para o ano são ainda piores: a previsão para o índice fechado de 2022 é de 72,6%. Os números já estão muito distantes da projeção inicial do governo argentino para o ano, que era de 33%, e também da faixa de 38% a 48% prevista no acordo de refinanciamento de parte da dívida argentina com o FMI, assinado em março. No mesmo dia em que o Indec, o órgão oficial de estatísticas argentino, divulgava a inflação de maio, o dólar batia novos recordes no mercado informal argentino – 224 pesos, contra 127,50 pesos na cotação oficial, em que há limites à quantidade de moeda americana que os argentinos podem adquirir.

Uma vez reinstalada na Casa Rosada, a esquerda voltou a dar a única resposta que conhece para o problema da inflação: intervencionismo total e controle de preços, com os resultados de sempre

A Argentina tem sido vítima de décadas de populismo que fizeram explodir o gasto público – resumindo, é como se a Nova Matriz Econômica que o petismo aplicou no Brasil tivesse sido muito mais intensa e duradoura –, e mesmo governos não esquerdistas relutaram muito em atacar o problema de fundo. O caso mais recente foi o de Maurício Macri, eleito em 2015 na esteira do desastre da gestão Cristina Kirchner, mas que não teve a coragem necessária para promover o choque de que o setor público argentino necessitava, com privatizações e reforma administrativa forte. Macri optou por um caminho de concessões ao funcionalismo e reformas lentas e graduais; sua escolha foi um enorme fracasso, a ponto de o presidente “liberal” encerrar seu mandato congelando preços para conter a inflação. Populismo por populismo, os argentinos escolheram quem mais entendia do assunto, negando a reeleição a Macri em 2019 e trazendo de volta os esquerdistas, incluindo a própria Cristina Kirchner, agora no papel de vice-presidente na chapa de Alberto Fernández.

E, uma vez reinstalada na Casa Rosada, a esquerda voltou a dar a única resposta que conhece para o problema da inflação: intervencionismo total e controle de preços, com os resultados de sempre – não apenas a inflação não retrocedeu, como agora o país volta a conviver com o fantasma do desabastecimento, como na crise do diesel. A bem da verdade, e comprovando o estado de verdadeira prisão mental em que vive a classe política argentina, a oposição não parece oferecer nenhuma resposta eficaz: o máximo que conseguiu até agora foi propor o corte de dois zeros no peso, como resposta a outro factoide de Fernández, a emissão de uma nova família de cédulas de peso, com figuras da história argentina, substituindo as notas criadas em 2016 e que exibem a fauna local.


Nessas circunstâncias, a possibilidade de a Argentina crescer 3,3% este ano e 2% em 2023, depois de avançar 10,3% em 2021, não chega a ser um grande alento, até porque no ano que vem a inflação deve se manter na casa dos 60%. O crescimento atual se dá sobre uma base bastante deprimida, pois o PIB vinha de três anos seguidos de queda: 2,6% em 2018, 2% em 2019 e 9,9% em 2020, o primeiro ano da pandemia. Desde o biênio 2010-2011 a Argentina não consegue emendar dois anos consecutivos de crescimento na economia, mas a gangorra já vem de muito mais tempo, sendo raros os períodos mais longos de avanço, como ocorrera em 1991-94 e 2003-07 (este último sucedendo quatro anos seguidos de recessão, incluindo o tombo de 10,9% em 2002).

O economista e Prêmio Nobel de 1971 Simon Kuznets afirmou, certa vez, que havia quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina – em um caso, um país destruído que se reergueu para se tornar uma potência em pouco tempo; em outro, uma nação que já esteve entre as mais ricas do mundo e que submergiu a ponto de os bons tempos pertencerem agora aos livros de História. O destino da Argentina demonstra de forma emblemática que o populismo e a gastança ilimitada são capazes de causar a ruína até mesmo dos países mais prósperos.


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