Confiança

Por
Paulo Polzonoff Jr.


“Manda avisar lá o cara que gostei da ironia, talquei?”, teria dito o presidente Jair Bolsonaro.| Foto: EFE/ Joédson Alves

(Antes, preciso reconhecer que a maioria silenciosa entendeu o que havia para entender. E a esses só me resta agradecer não só pela generosidade, mas também pela confiança. Porque é disso que se trata este texto: da importância de estabelecer relações de confiança. Até mesmo com desconhecidos como eu. Sem um mínimo de confiança não existe Civilização. Nem risada).

Passei o feriado pensando na melhor forma de reagir ao meu medo diante da constatação de que a mágica não se concretizou e, por isso, vários leitores me apedrejaram pela ironia do texto “Um dia na vida de Jair Bolsonaro, o monstro fascista e o que mais você quiser*”. Pois é. Apesar do asterisco, em si uma confissão de derrota, não aconteceu entre mim e uma minoria de leitores furiosos a gloriosa telepatia necessária para uma relação saudável entre texto e leitor.

Minha primeira reação foi aquela que vivo cobrando de Hamlet: a inação. Ou, no caso, o silêncio. “A emenda pode sair pior do que o soneto” e “o leitor que não entendeu a ironia óbvia já está perdido” foram duas das justificativas que evoquei nesta minha opção primeira. E talvez mais sábia. Um amigo, porém, me disse que o silêncio poderia ser interpretado como arrogância. “Ainda mais vindo de você, que já tem essa nareba empinada aí!”, disse. A saída, para ele, era explicar bem devagar o que é ironia, a diferença entre a ironia e o sarcasmo, a importância de sempre se ressaltar o ridículo das narrativas hiperbólicas, etc. “Isso, sim, é que seria arrogância. E condescendência!”, argumentei, mais por teimosia do que por convicção.

Seria o caso de pedir desculpas? Reza o 11º. Mandamento Contemporâneo que “Não se pede desculpas à turba ensandecida”, não é mesmo? E, no mais, por que haveria de pedir desculpas se a crônica foi escrita com a melhor das intenções e os propósitos claros de (i) fazer rir, (ii) levar o leitor a, por um breve momento, se colocar no lugar do outro e (iii) perceber como somos ridículos quando criamos uma versão monstruosa de alguém, seja ele nosso vizinho ou o presidente? Não necessariamente nessa ordem, claro.

Instintivamente – e o instinto é um péssimo conselheiro – é claro que fui tomado pela indignação, que me tentou a apontar o dedo em todas as direções e a usar palavras nada educadas (“Paulo Freire!”) para me referir àqueles que ousaram não me entender. Com um pouquinho de paciência, porém, resisti à tentação, enxotando-a para o lugar de onde jamais deveria ter saído. E me pus a praticar um dos meus esportes preferidos: tentar entender a origem dessa agressividade, desse ruído insistente, dessa desconfiança patológica, dessa sensação de que estamos sempre cercados por inimigos ou traidores.

Enquanto não abro o placar, contudo, me proponho a explicar o que me leva à opção sempre arriscada pela ironia. Depois de mil textos só na Gazeta do Povo, acredito que entre mim e os leitores já se estabeleceu uma relação de confiança que me permite um diálogo mais cálido e leve. Isto é, sem a frieza e objetividade presentes no trabalho de outros autores – que têm o seu lugar e função. E principalmente sem a virulência e fugacidade dos panfletos que um dia escrevi e dos quais, cá entre nós, me arrependo um bocado.

No mais, repito aqui algo que venho dizendo há pelo menos cinco anos, desde que decidi que minha cruz era indissociável das palavras. Não raro, ao dizer o que vou dizer no começo do parágrafo seguinte, encontro sorrisos de escárnio, como se eu fosse um jovem espinhento idealista que precisa urgentemente ir até a estante e ler o “Ilusões Perdidas”, do Balzac. Mas digo mesmo assim. E redigo. E re-redigo. Até porque a repetição é também uma forma de me convencer a nunca, jamais, em hipótese alguma menosprezar qualquer pessoa que tenha despendido (mas não desperdiçado) alguns minutos do dia para, no íntimo de sua caixa craniana, ouvir o que tenho a dizer.

Eis o que digo e repito: não menosprezo o leitor. Além disso, reconheço que, na falha de entendimento, há muito mais do que a desconfiança, a ignorância e, de alguns, até um tiquinho de má-fé que não, não me passa despercebida. Há, isso sim, dias ruins e frases escritas e lidas apressadamente; há traumas insondáveis; há sobretudo o medo de ser enganado. E há, infelizmentissimamente, o cinismo contemporâneo, ao qual ninguém está imune e que cobre todas as superfícies com uma camada nem sempre muito fina do mais triste niilismo, para o qual a busca pela excelência é uma ridícula quimera. Não é.
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