Medida permite aumentar as despesas fora do teto de gastos com benefícios sociais em ano de eleição; especialistas falam em manobra na Lei de Responsabilidade Fiscal e na lei eleitoral
Anna Carolina Papp , O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A estratégia do governo de decretar estado de emergência para aprovar um amplo pacote de benefícios sociais às vésperas da eleição é vista como frágil e questionável por especialistas ouvidos pelo Estadão – tanto do ponto de vista jurídico como fiscal. O chamado “pacote do desespero” já está avaliado em R$ 38,7 bilhões fora do teto de gastos – e pode fazer as despesas do governo voltarem a crescer como proporção do PIB, o que não acontecia desde o início da regra do teto de gastos.
Segundo o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e um dos pais da regra do teto, o pacote, que inclui medidas como aumento do Auxílio Brasil para R$ 600, a zeragem da fila e a criação de uma bolsa-caminhoneiro de R$ 1 mil, significaria um gasto adicional de 0,4% do PIB em 2022.
Com isso, a despesa primária do governo (sem contar os gastos com o pagamento dos juros) passaria para 19% do PIB – revertendo a trajetória de queda instaurada pelo teto. “É um custo fiscal muito alto e em aberto, pois vem aumentando e abre um precedente perigoso em termos constitucionais”, diz Mendes.
O teto de gastos, que passou a valer em 2017, limita as despesas do governo à inflação do ano anterior. Com a lei, o gasto primário, que beirou 20% do PIB em 2016, chegou a cair a 19,3%. Voltou a subir em razão da pandemia e bateu o pico de 26,1% em 2020. Passada a calamidade, para este ano, a projeção era de que chegasse a 18,2% do PIB. Com o novo pacote à mesa e considerando precatórios parcelados do governo – dívidas judiciais da União –, o gasto deve voltar ao patamar de 19%.
“A calamidade abriria espaço para muito mais gastos, como na pandemia. Já o conceito de estado de emergência está mais relacionado a desastres, como os climáticos. Trata-se de uma descaracterização da legislação, para financiar o pacote às vésperas da eleição”, diz ele.
Mendes avalia como positivo o fato de o governo ter decidido direcionar o valor reservado inicialmente pela PEC dos Combustíveis diretamente para o Auxílio Brasil, em vez de compensar a perda de arrecadação dos Estados que zerassem o ICMS do diesel e do gás.
“Empobrecimento se resolve com transferência de renda, mas aí começam os problemas, porque o Auxílio Brasil foi mal desenhado”, diz. “O valor mínimo de R$ 400 estimulou a divisão de famílias para acumular benefícios. Com R$ 600, haverá mais estímulo a essa divisão, e aumento adicional da fila – essa mesma que o governo quer zerar. O programa está perdendo o foco.”
Disparada dos combustíveis
A constitucionalista Nina Pencak, do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, concorda com a avaliação de que o cenário atual não se configura como excepcional para decreto de estado de emergência.
A justificativa do governo é a disparada do preço dos combustíveis, por causa da guerra entre Rússia e Ucrânia. Porém, apesar de elevado, o preço do barril de petróleo no mercado internacional hoje não está no seu pico. Em março, beirou os US$ 140 – hoje, está abaixo dos US$ 120.
“Estado de emergência, pela lei, tem a ver com desastre, não com uma situação de crise econômica. Se qualquer crise que gere aumento de preços virar estado de emergência, a gente vai viver em estado de emergência”, diz ela. “Criar uma exceção à Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo que há dispositivos na Constituição que vedam essas despesas, dispositivos da legislação eleitoral, é a constitucionalização de uma irresponsabilidade fiscal”, diz.
A economista-sênior da consultoria Tendências, Juliana Damasceno, alerta que o decreto do estado de emergência abre precedentes e pode ser apenas a porta de entrada para uma série de outros gastos.
“O que essa PEC está fazendo é abrindo uma manobra na Lei de Responsabilidade Fiscal e na lei eleitoral. Abrindo esse crédito extraordinário, que respaldo o governo tem para não conceder reajuste aos servidores, por exemplo?”, questiona. “A forma apressada e eleitoreira que tem sido o norte das decisões de política econômica tem deixado uma conta muito cara. A questão eleitoral passa determinar os rumos do orçamento em 2022 e deixa preocupações para 2023.”