Editorial
Por
Gazeta do Povo


Entidades pró-aborto questionam norma que recomenda antecipação do parto em vez do aborto quando a gestação já ultrapassou as 22 semanas.| Foto: Unsplash

Uma corajosa nota técnica do Ministério da Saúde sobre o atendimento à gestante vítima de estupro e que deseja abortar, com recomendações importantes que visam a proteção das duas vidas em jogo, está sob bombardeio e corre o risco de ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Quatro entidades pró-aborto acionaram a corte contestando o documento e, após ouvir o ministério, a Presidência da República e a Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro Edson Fachin deve tomar uma decisão – que, de certa forma, ele já antecipa no despacho em que pede explicações do governo, ao afirmar que “o quadro narrado pelas requerentes é bastante grave e parece apontar para um padrão de violação sistemática do direito das mulheres”.

No entanto, a leitura do texto mostra que nem de longe pode-se dizer que a nota técnica representa alguma “violação” de “direito das mulheres”, muito menos uma que se possa considerar “sistemática”. As mudanças que o documento traz em relação às normativas anteriores tratam, basicamente, de procedimentos que auxiliem a investigação policial sobre a violação sexual cometida, não sobre o aborto – por exemplo, a necessidade de informar a autoridade policial e de preservar os restos mortais do feto para a possível realização de exames genéticos. Em nenhum momento se pretende violar a autonomia ou a privacidade da mulher. “Essa iniciativa [a notificação do estupro junto à polícia] não objetiva verificar se a mulher faltou com a verdade ao noticiar ter engravidado em relação sexual forçada, mas fazer com que o aparato repressivo crie condições para identificar e punir o agressor”, diz o documento. Ou seja, se a nota técnica contribui para a “perseguição” de alguém, este alguém é o estuprador, não a mulher que aborta.

Nem de longe pode-se dizer a nota técnica representa alguma “violação” de “direito das mulheres”, muito menos uma que se possa considerar “sistemática”

O trecho mais contestado pelas entidades que acionaram o STF, no entanto, é outro: a recomendação de que, a partir de 21 semanas e seis dias de gestação, seja feito não o aborto, mas a antecipação do parto, porque a partir deste limiar já haveria chance razoável de sobrevivência do bebê fora do útero, desde que se empreguem todos os cuidados necessários. Por mais que o artigo 128 do Código Penal – que não pune o aborto em caso de estupro e risco de vida para a mãe – não faça referência a idades gestacionais, também não é possível dizer que haja aqui violação do direito da mulher.

A orientação de antecipar o parto em vez de realizar o aborto está de acordo com os conhecimentos médicos mais atualizados sobre as chances de sobrevivência de um bebê tão prematuro, e segue indicações da Organização Mundial da Saúde. Fato é que, analisando friamente a situação, de qualquer forma a gravidez terminará naquele momento; a diferença está entre retirar o bebê vivo (com a posterior entrega para a adoção, se for esse o desejo da mãe), ou retirá-lo após ele ter sido morto dentro do útero – e a literatura médica atesta que, entre essas duas escolhas, a segunda traz riscos adicionais para a mulher. A antecipação do parto, assim, é a opção que melhor preserva a saúde da mãe, ao mesmo tempo em que também garante o direito à vida da criança. Nada disso, no entanto, detém os defensores do direito a matar seres humanos indefesos e inocentes, que se insurgiram também contra o esclarecimento legal feito no documento.

O que a nota técnica afirma é, basicamente, o que está no artigo 128 do Código Penal: que, ao afirmar que “não se pune” o aborto nos casos de estupro e risco de vida para a mãe (o caso de feto anencéfalo foi acrescentado por decisão do Supremo em 2012), o legislador não retirou o caráter de crime dessas práticas; ele apenas determinou que não se aplicariam as penas previstas nos artigos 124 a 126 para as demais hipóteses de aborto. O fato de não haver pena não permite concluir que há uma legalização, daí o erro em se afirmar que há “aborto legal”.

A nota técnica, é verdade, não aplica a consequência lógica deste raciocínio. Afinal, se determinada prática é considerada criminosa, não faz o menor sentido que instalações públicas sejam usadas para que se cometam crimes; mas o documento não chega a proibir a realização de abortos no SUS – pelo contrário, ele contém instruções para o atendimento a gestantes vítimas de violência sexual que desejem interromper a gravidez. A nota, portanto, consiste no avanço possível, como já afirmamos anteriormente, mas acaba mantendo uma certa “aceitação tácita” do aborto que deixa brechas para uma decisão que não reflete o espírito da lei penal.

Infelizmente, não temos como negar que parcela considerável da comunidade jurídica e a própria prática corrente de se realizar abortos na rede pública nos casos citados pelo artigo 128 do Código Penal dão respaldo à tese de que não há crime nestas situações, em vez de simplesmente não haver pena. Ironicamente, de todas as seis circunstâncias em que a lei penal declara haver crime, mas sem punição ou com pena facultativa, o aborto é a única em que esse tipo de interpretação ocorre; a título de exemplo, o artigo 121, parágrafo 5.º do Código Penal permite que o juiz não aplique pena nos casos de homicídio culposo em que o autor sofre de forma grave as consequências do ato, mas nem por isso as pessoas se referem a esta situação como “homicídio legal”.

O ativismo judicial tem sido a única forma pela qual o abortismo tem conseguido avançar sua pauta no Brasil

É possível, assim, que Fachin decida pela legalidade do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto portador de anencefalia? A chance existe e não é pequena – afinal, o ministro já mostrou a que veio nesse aspecto ao seguir Luís Roberto Barroso na absurda decisão segundo a qual a proibição do aborto no primeiro trimestre de gestação seria inconstitucional. No entanto, por todos os motivos que já elencamos, essa seria uma decisão que não respeita o sentido do texto legal desejado pelos que o elaboraram.

Uma decisão que derrubasse completamente a norma técnica, anulasse apenas alguns de seus trechos ou declarasse a existência de um “aborto legal”, portanto, representaria mais uma interferência do Judiciário em atribuições do Poder Executivo, ou a reescrita da lei por quem não tem o poder de fazê-lo. O ativismo judicial tem sido a única forma pela qual o abortismo tem conseguido avançar sua pauta no Brasil. E só consegue fazê-lo graças a esta aliança entre militantes e ministros do Supremo que agem como déspotas esclarecidos, convencidos de que há “progresso” em algo tão bárbaro quanto a eliminação dos mais indefesos e inocentes entre os seres humanos.


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