Agronegócio
Por
Marcos Tosi
Colheita de trigo| Foto: Wenderson Araújo / CNA Divulgação
Considerado por muitos anos o “patinho feio” das commodities agrícolas no Brasil, devido às dificuldades no manejo de doenças, riscos climáticos e baixo retorno financeiro, o trigo vive uma nova realidade de mercado e de conceito perante agricultores, técnicos, pesquisadores e governantes. Atualmente, o cereal tem peso negativo de quase 2 bilhões de dólares por ano na balança comercial brasileira, mas já há projetos para colocar a cultura no “azul” e transformá-la numa fonte de divisas.
A guerra na Ucrânia escancarou os índices acentuados de dependência externa para produção do pão de cada dia – já estávamos “acostumados” a importar metade de nossas necessidades – e, mais do que isso, abriu oportunidade para os produtores obterem lucro com a cultura. Para muitos agricultores, o trigo, até então, tinha suas virtudes não na rentabilidade, mas na amortização dos custos do sistema de produção e em seu papel de controlar pragas e preparar o solo para o cultivo que realmente importa, o da soja, no verão.
Pois a guerra virou esses conceitos do avesso. As cotações do trigo, que já vinham numa tendência de valorização desde 2020 por problemas climáticos nos EUA, Canadá e na Europa, registraram uma disparada inédita. Em 24 meses, a cotação do cereal na Argentina saiu de 200 dólares a tonelada para mais de 450 dólares, posto no porto. Os vizinhos, a propósito, abastecem quase todo o déficit do mercado brasileiro.
Plano quer dar impulso ao “trigo tropical”
Cerca de um mês após o início da guerra, no fim de março, o Ministério da Agricultura aprovou um plano de trabalho da Embrapa para impulsionar a pesquisa e o incremento da produção do “trigo tropical” no cerrado brasileiro. Num prazo de 36 meses, a meta é expandir a área em 100 mil hectares na região que abrange partes de São Paulo, Goiás, Minas Gerais Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bahia. Só esse acréscimo representaria uma desoneração de R$ 450 milhões na balança das importações de trigo. Os próprios egípcios, maiores importadores mundiais do grão, estão de olho numa parceria para ter acesso a esse trigo tropicalizado, que poderia trazer mais segurança alimentar ao país árabe.
Para atrair novos produtores de trigo no Cerrado, há um esforço articulado de moinhos, sindicatos, empresas de pesquisa e outros órgãos de governo, que pretendem organizar a produção de sementes, transferir tecnologias e traçar uma estratégia de comunicação que ajude a quebrar resistências. “É um trabalho forte para desmistificar a questão de que o trigo só dá no Sul. Hoje tem muitas áreas em nossa região em que não se planta nada no período de inverno, que estamos mapeando e que poderiam começar a cultivar o grão”, diz Sergio Scodro, presidente do Sindicato dos Moinhos de Trigo da Região Centro-Oeste.
“Tem agricultor que ainda fala: não, trigo é lá do Paraná e do Rio Grande do Sul, onde o clima é frio. Ele não tem noção de toda a pesquisa que hoje é feita não somente pela Embrapa, mas por outras empresas privadas, que estão adaptando o trigo ao cerrado”, emenda Scodro. Somente em Goiás, os moinhos têm capacidade para processar 450 mil toneladas de trigo, mas a produção é de apenas 200 mil toneladas. Ou seja, não faltariam compradores.
Fronteira para a autossuficiência está no trigo sequeiro
Fazer o trigo “subir o mapa” de forma mais acentuada, no entanto, é algo que esbarra na concorrência de outras culturas rentáveis no Centro-Oeste, com uso de irrigação. O cereal tem tradição de cultivo irrigado em áreas de Goiás e do Distrito Federal, mas concorre com hortaliças e feijão, que, por vezes, são mais rentáveis. O cenário atual mexeu nesta balança. Para Márcio Só e Silva, da Semevinea Genética de Sementes, atualmente é possível colocar trigo no cerrado, com pivô central de irrigação, competindo com qualquer cultura. “Mas numa situação normal, é difícil que isso aconteça”, diz. “A grande fronteira para atingir a autossuficiência é no sequeiro, nas áreas não irrigadas. São milhões de hectares que ficam praticamente em pousio no inverno. Isso permite entrar com o milho safrinha, com o sorgo e o trigo safrinha. São muitos hectares que sobram. E hoje o trigo está tendo um retorno bem superior ao preço do milho”, avalia.
Antes ainda das circunstâncias ficarem mais favoráveis, já existia um grupo de técnicos e produtores tentando fazer o trigo reproduzir o caminho da soja no Brasil, mapa acima. E mais além ainda do Centro-Oeste. A Semevinea está dando consultoria para produtores oriundos do Sul do país que querem “experimentar” o trigo em áreas de grãos do Maranhão e do Piauí. Num primeiro momento, estão sendo levadas para lá as cultivares que já demonstraram resistência à seca no Centro-Oeste. Mas, com o tempo, a ideia é desenvolver variedades adaptadas às condições locais.
Seleção genética buscar cultivares tolerantes ao calor
“Estamos fazendo pesquisas para desenvolver variedades tropicalizadas. É como se estivéssemos varrendo o DNA com uma vassoura, limpando o gene do frio e deixando o gene de temperaturas mais elevadas. A gente vai fazendo isso de geração em geração, o que vai tornando o material mais adaptado às condições”, diz Só e Silva.
Nenhuma das equações envolve a derrubada de árvores. “Temos áreas potenciais no cerrado para produzirmos trigo em quatro milhões de hectares sem precisar desmatar. Novas fronteiras para expansão da cultura no Maranhão, Piauí, Ceará e Roraima estão sendo pesquisadas. Mas, para que essa nova fronteira agrícola seja aberta, é necessário que se criem políticas de governo para incentivar o cultivo nessas regiões. Condições climáticas, pesquisa, genética e produtores qualificados nós temos”, aponta Julio Albrecht, da Embrapa Cerrados.
Há grande expectativa para saber como o trigo transgênico, uma novidade deste ano, vai se comportar no Cerrado. Uma das características é a resistência à seca, o que “é maravilhoso para o que precisamos no Centro-Oeste e no Nordeste” – sublinha Sergio Scodro, dos moinhos. Os testes estão sendo feitos pela Embrapa desde março, com autorização da CTNBio.
Experimentos têm dado bons resultados do Matopiba ao Ceará
Se o caminho da autossuficiência em trigo passará realmente pelo incremento significativo das colheitas no Cerrado e até no Matopiba (partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é algo que só o tempo vai dizer. Os experimentos têm dado bons resultados, inclusive, em campos de Roraima, Ceará e Alagoas. “Já existem dados promissores em fase experimental nesses estados. Nos experimentos no Ceará, obtivemos acima de 3.000 kg por hectare em algumas avaliações. Em outras, onde houve problemas com o sequeiro, caiu para 1.500 kg por hectare. Ainda precisamos trabalhar com zoneamento de risco climático e época de semeadura. As questões econômicas e de variedades estão muito associadas. Quando se disponibiliza variedades mais produtivas e mais resistentes a doenças, automaticamente o trigo vai ficando mais viável”, aponta Eduardo Caierão, pesquisador da Embrapa Trigo em Passo Fundo.
O que não pode ser desprezado é o papel da região Sul nessa expansão. No Rio Grande do Sul, que com o Paraná responde por 87% do trigo produzido no país, o ciclo atual atingiu área plantada que não se via há 42 anos. A Emater estima o cultivo de 1,41 milhão de hectares, contra 1,18 milhão no inverno anterior. No entanto, o total de culturas de inverno ocupa apenas um quarto da área plantada no verão, que é de 8,5 milhões de hectares. “Só aí tem espaço para duplicar, triplicar, quadruplicar a área. O Rio Grande poderia ocupar mais quatro milhões de hectares; em Santa Catarina, mais um milhão, e no Paraná também, mais um milhão. Essa região temperada vai ser por alguns anos ainda a área de abastecimento do país, em quantidade”, avalia o pesquisador Gilberto Rocca da Cunha, responsável pelo zoneamento agroclimático do cereal na Embrapa.
País terá primeira usina de etanol de trigo
Além do trigo para alimentação humana e animal, e do mercado exportador, um novo uso bate à porta. A BSBios, da área de biodiesel, assinou no mês passado protocolo de intenções para construir a primeira usina de etanol de trigo do país, em Passo Fundo. Um investimento de 316 milhões de reais que terá, ainda, como subproduto, o farelo para alimentação animal. “Estamos num novo patamar. O etanol é mais um mercado que se abre. Já não é só um mercado gaúcho e nacional. Tem agora a possibilidade de exportação. É um arranjo extremamente salutar e tecnicamente interessante, já que o inverno é essencial para o sistema de produção dar resultado na soja e no milho. E isso deve trazer mais produtores para o trigo”, diz Alencar Ruggieri, diretor-técnico da Emater do Rio Grande do Sul.
Nem tudo conspira a favor do trigo. Um fator recente que turva o cenário é o temor de uma recessão global. Desde que o FED (banco central americano) aumentou os juros de forma mais agressiva, no mês passado, e sinalizou tendência de alta, muitos fundos de ativos que estavam nas commodities agrícolas migraram para alternativas de risco mais baixo, como títulos do Tesouro americano e o dólar. “O mercado vê que a demanda vai se deteriorar muito mais do que a oferta. Enquanto houver muita incerteza, há tendência de sair das commodities. Mas é comida, é primeira necessidade. Tem oferta bastante restrita ainda. Persistem os fundamentos altistas, guerra, sanções contra a Rússia e um mercado com consumo alto. Vai diminuir a demanda? Quanto de risco tem essa recessão? No momento, o mercado preferiu recuar”, avalia Fabio Lima, analista da consultoria StoneX.
Lima é cético quando à capacidade de o país manter a expansão de trigo nos níveis atuais, ou mesmo de modestos 5% ao ano. “Não vejo essa possibilidade por enquanto. O trigo é uma cultura arriscada em termos climáticos e em média não tem uma alta rentabilidade. Esse ano o estímulo veio dos bons preços”, argumenta.
Autossuficiência deve chegar em dez anos, segundo Embrapa
As estimativas da Embrapa apontam para uma provável autossuficiência de trigo no Brasil num prazo de dez anos. O consumo atual é de 12,7 milhões de toneladas, das quais metade precisa ser importada. Durante anos seguidos, até 2012, o País era o segundo maior importador mundial de trigo, atrás apenas do Egito, que ainda hoje importa 11 milhões de toneladas.
Mais do que ser autossuficiente, o desafio, segundo Gilberto Rocca da Cunha, é pensar em exportação. “Precisamos sim olhar para nossa demanda de 12 milhões de toneladas, mas é preciso olhar para um comércio mundial que chega a 220 milhões de toneladas. É aí que o Brasil precisa focar. É um dos raros produtos em que não ocupamos as primeiras posições para exportação, como soja, milho, carnes, celulose e café”.
A China, maior produtor mundial de trigo, colhe anualmente uma safra de 135 milhões de toneladas. A Índia, segundo maior produtor, com 106 milhões de toneladas, barrou as exportações do cereal em maio sob a justificativa de garantir preços acessíveis à população local. A Rússia deve produzir neste ano 81 milhões de toneladas, das quais 40 milhões serão destinadas à exportação (um recorde), segundo dados mais recentes, de junho, do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. A Ucrânia deve colher no ciclo 2022/23 um total de 21,5 milhões de toneladas de trigo, 11,5 milhões a menos do que em 2021/22, devido à guerra. Rússia e Ucrânia respondiam até antes do conflito por 30% das exportações globais de trigo.
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