Editorial
Gazeta do Povo
O guarda municipal Marcelo Arruda, assassinado em festa de aniversário que teve Lula como tema.| Foto: Reprodução/Redes Sociais
Dois episódios ocorridos em um espaço de poucas horas neste fim de semana são um tristíssimo alerta de até onde a polarização e as rivalidades políticas exacerbadas podem levar o país. Na madrugada de domingo, a tragédia: o policial Jorge Guaranho, apoiador do presidente Jair Bolsonaro, baleou e matou o guarda municipal e tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu (PR) Marcelo Arruda, durante a própria festa de aniversário do petista. Na véspera, o ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado Lula fazia um agradecimento ao ex-vereador Manoel Eduardo Marinho, o “Maninho do PT”, durante ato em Diadema (SP). O favor prestado? Empurrar um empresário na direção de um caminhão em movimento, causando-lhe um traumatismo craniano que deixou sequelas, depois que a vítima havia gritado ofensas contra o PT diante do Instituto Lula, no dia em que o então juiz Sergio Moro havia ordenado a prisão do ex-presidente, em 2018.
A violência política não é novidade no Brasil; ela é um hábito muito anterior ao “nós contra eles” em que o petismo transformou a vida pública nacional. Atentados e assassinatos de candidatos e políticos em exercício de mandato infelizmente são comuns, especialmente nos rincões mais distantes dos grandes centros, mas não apenas neles, como bem demonstra o assassinato ainda mal esclarecido da vereadora carioca Marielle Franco, em 2018. No entanto, o que vem ocorrendo no Brasil nestes últimos anos é muito pior: um fenômeno que anestesia e dessensibiliza a sociedade, e dá carta branca aos militantes mais propensos à violência.
Se todo o discurso de desumanização do adversário não for enfrentado como se deve, o cenário para novas tragédias como a de Foz do Iguaçu continuará montado
Trata-se da desumanização do adversário político, que já não é apenas alguém que tem convicções políticas diferentes, e que precisam ser combatidas no campo das ideias; alguém que continua merecendo o devido respeito como ser humano, alguém que tem família, amigos, que ama e é amado. Em vez disso, não só os políticos, mas também seus apoiadores tornaram-se “lixo”, “vermes” e outros termos que dariam orgulho aos mestres dessa estratégia: os responsáveis pela propaganda nazista, que conseguiram fazer a sociedade alemã aceitar a ideia de que os judeus eram não pessoas com dignidade, mas pragas. E, como todos sabemos, o que se faz com pragas e vermes é eliminá-los; o que se faz com o lixo é descartá-lo. Assim, Lula e os petistas, ou Bolsonaro e os bolsonaristas – a depender da orientação ideológica de quem tem o megafone na mão – seriam gente que não merece nem sequer o direito à vida.
Só isso explica que uma rivalidade política tenha sido o pontapé inicial para uma troca de tiros que terminou na morte de Araújo e na hospitalização do próprio agressor – por mais que as circunstâncias concretas em que se iniciou a briga ainda estejam sendo apuradas, com versões conflitantes entre o narrado no boletim de ocorrência e vídeos de câmeras de segurança. Só isso explica que Lula e outros petistas enxerguem como virtude o fato de um apoiador seu ter respondido a um insulto com uma agressão que por pouco não terminou em morte, e ainda por cima distorçam a história como se Maninho do PT tivesse sofrido uma enorme injustiça. “Esse companheiro Maninho ficou preso sete meses por me defender (…) Ficou preso sete meses porque resolveu não permitir que um cara ficasse me xingando na porta do instituto”, disse Lula. Não, muitas vezes não: o ex-vereador ficou preso porque tentou matar uma pessoa que discordava dele em termos de política. Ele não foi julgado até hoje, enquanto sua vítima morreu no fim do ano passado.
E aqueles que têm a maior responsabilidade em desarmar esta bomba ficaram aquém do que se esperaria diante de um caso como o de Foz do Iguaçu. De Lula, o pai do “nós contra eles”, do discurso hostil à imprensa que já levou a vandalismo contra redações e ataques a jornalistas, não se esperava muita coisa; mas ele foi capaz de demonstrar completa hipocrisia ao pedir “diálogo, tolerância e paz” horas depois de tratar como herói – só faltou falar em “guerreiro do povo brasileiro” – um militante petista que por pura sorte não se tornou um homicida. Bolsonaro não desceu ao mesmo nível de Lula: pediu apuração do episódio e repetiu manifestação de 2018 na qual afirmava “dispensar qualquer tipo de apoio de quem pratica violência contra opositores”. No entanto, faltou ao presidente a lembrança mais essencial em momentos como este: a dor por uma morte sem sentido e a solidariedade à família do petista assassinado. Além disso, na capacidade de chefe da nação, não seria absurdo esperar dele um discurso ainda mais enfático de condenação à violência politicamente motivada.
Mas não será apenas com a crítica à violência propriamente dita que os ânimos serão desarmados. Se todo o discurso de desumanização do adversário não for também enfrentado como se deve, o cenário para novas tragédias continuará montado. Se o adversário político mente, que seja confrontado com a verdade; se rouba, que tenha seus crimes devidamente identificados e punidos. Mas mesmo o mentiroso, o corrupto ou o ladrão continuam a ser pessoas, seres humanos, portadores de dignidade (ainda que dela não façam questão), e, por isso, merecedores do direito à vida. Não são “lixo” ou “vermes” com quem só se lida na base do extermínio.
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