Artigo
Por
Brian Patrick Eha
City Journal
Fernando Pessoa, assim como Shakespeare, não contentou em ser apenas um.| Foto: EFE
Fernando Pessoa, o modernista português que em muitos aspectos é o poeta perfeito para nossa época obcecada por identidades, era ao menos quatro poetas em um. Seus melhores versos, assim como boa parte da sua prosa, surgiram para o mundo assinados pelo pastoral Alberto Caeiro, o classicista Ricardo Reis e o cosmopolita Álvaro de Campos, além do próprio Pessoa, progenitor dessa tríada poderosa que chamou de “heteronômios”. Complexos demais para ser chamados apenas de pseudônimos, individuais demais em suas preferências, temperamentos, filosofias e surtos de genialidade, esses eram o triunvirato em meio aos mais de 100 alter egos literários que Pessoa inventou em vida, muitos dos quais só foram descobertos depois de sua morte. “Seja plural como o Universo!”, dizia Pessoa a si mesmo. Walt Whitman — uma de suas maiores influências – talvez contivesse multidões, mas Pessoa dispersou essa cornucópia de personalidades pelo mundo, onde eles desenvolveram convicções pessoais, obsessões e tendências psicológicas próprias. Os heteronômios brigavam entre si por escrito e às vezes brigavam até com o próprio Pessoa.
A identidade instável de Pessoa refletia a confusão de sua época e também os problemas que ele enfrentara na juventude. Ele nasceu em 1888, em Lisboa, capital de uma potência decadente, governado pela mesma dinastia desde 1640. Até mesmo para os esquerdistas o colonialismo era motivo de orgulho. A economia de Portugal dependia da riqueza do Brasil e a monarquia, quando do nascimento de Pessoa, reclamava para si a propriedade de grandes territórios esparsamente ocupados e mal administrados em todo o continente africano, desde onde é hoje Angola, no oeste, até Moçambique, no leste. Era um império decadente. Os dias de glória que Luís de Camões (poeta nacional que Pessoa pretendia superar) retratara em seu épico “Os Lusíadas” eram coisa do passado.
Ao morrer, em 1935, Pessoa tinha vivido uma ditadura, uma revolução republicana, o fim da monarquia portuguesa, a Primeira Guerra Mundial e os primeiros anos do regime salazarista. Apesar de escrever muito sobre imperialismo, decadência e outros temas culturais, ele continuou alérgico ao “vocabulário da responsabilidade social”. Até mesmo seus amigos mais próximos tinham dificuldade para identificar as opiniões dele. Como disse o crítico Harold Bloom, “ só é possível ler Pessoa como um poeta político se você tiver certeza de que tudo se resume à política, incluindo o ‘bom dia’”. Mas ele não estava alheio ao mundo ao seu redor. Três de seus mais importantes heteronômios surgiram em 1914, ano da eclosão da Primeira Guerra Mundial, como se emergissem das rachaduras de um modo de vida fragmentado. Mais o que seus contemporâneos, Pessoa personalizou a confusão de seu tempo. Cada acontecimento provocava uma mudança sísmica interior, como nos diz Ricardo Reis — “o Horácio grego que escreve em português”, de acordo com o próprio pessoa:
Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode suceder-nos
O que nos tudo mude.
Brilhante, agitado e às vezes deprimido e às vezes entusiasmado, Pessoa pensava duas vezes sobre tudo – e três e quatro vezes também. Depois de abandonar a universidade, ele emprestou dinheiro de amigos e parentes, resgatou títulos da mãe e do padrasto e se sustentou escrevendo cartas em francês e inglês para empresários portugueses. Ao mesmo tempo, ele se envolveu em vários projetos literários e mirabolantes projetos empresariais, sendo que a maioria deles nunca saiu do papel. A vida que ele levava em Lisboa era agitada, com sua ronda pelos cafés literários, mas no todo sem grandes sobressaltos. Ele dizia sofrer de uma “inversão sexual leve”, nunca casou e provavelmente morreu virgem. Pessoa não se interessava por homens ou mulheres, e sim pela linguagem, e era apaixonado por seus poderes criativos. Infinitamente profícuo, às vezes ele parecia um observador de si mesmo, “o ponto de encontro de uma pequena humanidade que pertence apenas a mim”.
Elas, as personalidades inventadas de Pessoa, pertencem ao mundo agora. Na dramatis personae que dá início à enorme biografia do poeta escrita por Richard Zenith, ficamos encantados ao sabermos que “Ricardo Reis migrou para o Brasil em 1919 e ainda vivia na América do Sul, talvez no Peru, quando Pessoa morreu, em 1935”— o heteronômio sobreviveu a seu criador. O primeiro biógrafo de Pessoa, o escritor português João Gaspar Simões, acreditava que o caráter exótico dos heteronômios perderia força – mas na verdade o tempo só os fortaleceram. A divisão da personalidade do poeta se tornou a melhor alegoria para a forma obsessiva com que muitos de nós inventamos personalidades virtuais, marcas pessoais e vidas públicas. As invenções de Pessoa, fugidas da prisão no enorme baú de madeira que ele deixou para trás com mais de 25 mil textos, sem dúvida alguma sobreviveram a ele.
Mas para cada “alma completa” e texto perfeito que Pessoa criou há dezenas de obras fragmentadas e pseudoautores que existem em não mais do que no nome. Esses pedaços soltos – “entulho de uma espécie de Pompeia literária”, como diz Zenith – me lembram as mãos de Rodin em exibição no Metropolitan Museum of Art: cheias de genialidade, mas incompletas. A obra em prosa de Pessoas é um túmulo de fragmentos. Em novembro de 1914, Pessoa disse a um amigo: “meu estado emocional me leva a trabalhar duro, contra a minha vontade, no Livro do Desassossego. Mas tudo não passa de pedaços, pedaços, pedaços”. Assim como seu contemporâneo T. S. Eliot, Pessoa passou a vida acumulando fragmentos, ainda que estes fragmentos não sejam sinais de uma ruína.
Filho de uma mãe leitora e romântica e de um pai que teve seus momentos de glória como músico e crítico de teatro enquanto morria lentamente de tuberculose, Pessoa se tornou uma criança sensível e recolhida, mas independente. As palavras eram seus brinquedos, ainda que ele “gostasse da sensação de não entender nada”, como escreveu mais tarde. Um das coisas que ele talvez tenha sofrido para compreender nesses primeiros anos em Lisboa foi a presença da mãe paterna, uma espécie de Dionísia semidemente. Dada a ataques de loucura, assim como sua xará deusa grega, Dionísia deu ao criador de tantas personalidades alternativas provas de que “múltiplas personalidades podem se fundir num único ser humano”.
Aos cinco anos, Pessoas enfrentou a morte, com uma diferença de seis meses, do pai e do irmão caçula, Jorge. Então ele foi um observador encantado com a mudança da mãe, que passou da dor do luto a uma felicidade vertiginosa. Dias depois de perder o filho, ela conheceu um charmoso capitão da Marinha portuguesa: a atração foi imediata e eles se casaram logo em seguida. Eis aqui outra lição para Pessoa. “A dor não dura porque a dor não dura”, nos diz o heteronômio Álvaro de Campos num poema sobre uma mãe recém-enlutada. A mãe que perde o filho é personagem recorrente nos textos maduros de Pessoa, juntamente com a consciência da rapidez com que a dor pela perda desaparece.
Na imaginação infantil de Pessoa, a realidade se torna cada vez mais instável: as fantasias suplantam o mundo concreto. Protegido por um tio com certa fraqueza para a mentira, o futuro poeta começou a povoar sua solidão com indivíduos fictícios – ao menos dois dos quais, o capitão Thibeaut e o Chevalier de Pas, ele disse ao longo da vida toda terem sido reais e “explorados até as profundezas de suas almas”. Esse hábito de sonhar acordado só se aprofundou na adolescência. O desejo do menino solitário de se cercar “por amigos e conhecidos que não existem” anteviam a inventividade de uma carreira literária na qual ele pudesse conduzir entrevistas consigo mesmo, os heteronômios se provocando. Anos mais tarde, Pessoa brincaria com a própria noção de individualidade da mesma forma que brincava com seus amigos imaginários.
O menino-camaleão recomeçou a vida com a mãe em Durban, na África do Sul, onde o novo marido dela assumiu o cargo de cônsul português. Maior cidade da colônia britânica de Natal, Durban contava com um transporte público eficiente, uma biblioteca pública, jardim botânico, sociedades literárias e outros indícios de civilização, incluindo uma escola religiosa na qual Pessoa foi imediatamente matriculado. Obrigado a começar primário do início, e num novo idioma, ele concluiu os cinco anos em três, recebendo o Primeiro Prêmio em inglês e latim, e também sendo premiado por sua excelência acadêmica. No ensino médio, ele devorou a prosa de Thomas Carlyle e escreveu versos emulando Milton e os românticos ingleses. Pessoa voltou para Lisboa em 1905, mas ter sido exposto à literatura anglo-americano foi decisivo para ele.
A influência mais importante foi Whitman. O poeta americano, de acordo com Zenith, ensinou Pessoa “a se abrir, sentir tudo, ser tudo, e cantar”. A experiência de ler “Canção de Mim Mesmo” permitiu o surgimento, no dia 8 de março de 1914, do seu primeiro heteronômio de verdade, um poeta pastoral, mas sem sentimentalismos, chamado Alberto Caeiro:
Sou um guardador de rebanhos,
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Uma lufada de poemas soprou da pena de Pessoa, que usava essa voz incrivelmente nova. Explicitamente sem educação formal, ainda assim Caeiro era um observador perspicaz. Era como se ele tivesse descoberto o antídoto para seu intelectualismo exacerbado.
Como, porém, notou Thomas Merton, primeiro tradutor de Caeiro para o inglês, esses poemas tinham um quê de recolhido, de timidez. Como se o mundo habitado no qual o poeta se declara um “argonauta de sensações verdadeiras” não fosse o mundo cotidiano, e sim alguma espécie de planalto solar onde as coisas estavam banhadas na luz precisa, lançando sombras sobre os olhos. Caeiro é mais cerebral do que Whitman, que também se debruçava sobre o mundo material e se recusava a oferecer respostas definitivas:
Uma criança disse “O que é a grama?” me estendendo as mãos cheias
Como poderia responder a criança? Tenho as mesmas dúvidas do que ela.
Pessoa sonhava em se tornar um poeta inglês. Ele escreveu dezenas de sonetos, publicando 35 deles num livreto que enviou para a Sociedade Poética de Londres. Os poemas foram ignorados. Ele costumava atribuir suas obras em inglês a uma de suas personalidades. O mais incrível é que, em português, Pessoa significa “pessoa”. Percebendo essa coincidência, ele brincava com os nomes dos seus alter egos ingleses também, cada qual com sua característica e com coletâneas próprias.
O primeiro foi Charles Robert Anon, que publicou um poema num jornal de Durban em 1904. Por volta de 1906, ele foi substituído por Alexander Search, que se dizia autor de mais de cem poemas, um conto e vários ensaios. Zenith diz que Search é “uma versão platônica ou transcendente de Pessoa” – um idealista shelleyiano em busca da verdade e com a cabeça cheia de filosofias e humanismo iluminista. Em outras palavras, as questões mais espirituais e metafísicas expressas em inglês foram as do alter ego chamado A. Search [que pode ser traduzido como “uma busca”]. Anos mais tarde, Caeiro, novamente como se reagisse à tendência de seu criador, disse que essa busca não fazia sentido:
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
A biografia de Zenith alça voos sempre que nos faz mergulhar na imaginação de Pessoa e perde força quando se volta ao lado político e sociológico. A parte de Durban decepciona nas passagens sobre as condições de vida dos africanos e dos imigrantes indianos em Natal, e também quando fala da “divisão racista do trabalho” do qual a família do poeta fez parte. O índice onomástico trás duas menções a “blackface” [ato de pintar o rosto de preto]. O livro de Zenith foi publicado em 2021 e talvez seja inevitável que algumas de suas 937 páginas (sem incluir o prólogo e as notas finais) se dediquem a acusar Pessoa de racismo e misoginia sempre que possível – ainda que Zenith, no papel tanto de juiz quanto de jurado, seria misericordioso o bastante para reconhecer que tais atitudes, jamais fundamentais na obra genial de Pessoa, tenham “raízes rasas”, sem jamais se estabelecer ou ganhar proporção. Ao prometer o retrato de um homem, um biógrafo pode ser perdoado por nos descrever os trajes superficiais como indícios do que há de essencial por baixo deles. Coisa bem diferente é gastar milhares de palavras falando da origem social do alfaiate do biografado ou sobre as práticas de trabalho nos teares que produziam os tecidos usados na confecção desses trajes.
A personalidade central está em outras coisas, e o melhor de Pessoa transcende a política. Ainda assim, Zenith dedica todo um capítulo a Gandhi, sob o pretexto de que o líder indiano trabalhava como advogado e ativista pelos direitos civis em Durban enquanto Pessoa era um estudante na escola primária. Sim, é verdade que Pessoa admirou Gandhi no decorrer da vida — principalmente por seu estilo de vida asceta — Mas Zenith não para por aí. Ele encerra o argumento de que os britânicos tratavam os indianos como cidadãos de segunda classe desta forma: “Tudo isso, para Pessoa, enteado de um diplomata europeu, parecia a ordem natural das coisas”. Realmente é raro um biógrafo que se sente impelido a mostrar um artista como um menino de oito anos representante da supremacia branca.
“Se tem uma coisa que odeio é um reformista”, escreve Pessoa no “Livro do Desassossego”, definindo esse tipo como “o homem que vês os males superficiais do mundo e se põe a curá-los agravando males mais simples”. Chame-o de reacionário, se quiser; a busca por um programa social na obra dele é uma busca em vão. Católico de nascimento, ele era um investigador do espírito que explorava o culto, era obcecado por astrologia e, no todo, um cético — parte de uma geração que “herdou a descrença no Cristianismo e criou em si a descrença de todas as outras fés”, o que supostamente incluiria a maior parte dos dogmas seculares com os quais a imprensa e a universidade atuais catequiza os fiéis. Num dos poemas em inglês de Pessoa, ele coloca Deus “entre nosso silêncio e discurso, entre/ nós e a nossa inconsciência”. A curiosidade religiosa e as preocupações metafísicas aparecem com frequência em sua obra, atribuídas a um heteronômio ou não. Até mesmo Caeiro, que Pessoa chamou de “um São Francisco de Assis ateu” e que nega qualquer realidade para além das coisas materiais, invoca Deus – ainda que apenas para dizer que a divindade está equivocada:
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
A religião, para Pessoa, era uma ilusão sem a qual “vivemos sonhando, e os sonhos são a ilusão dos que não têm ilusões”. Seus sonhos eram, antes de mais sobre, sobre a autoinvenção, autodivisão, a multiplicação das personalidades. Sua incapacidade de acreditar no Deus da Trindade parece de alguma forma ligado à criação de novas personagens. Álvaro de Campos deixa a incerteza intelectual de lado e diz querer ser outra pessoa:
Tenho todos os dias crenças diferentes
Às vezes no mesmo dia tenho crenças diferentes
E gostava de ser a criança que me atravessa agora
A visão da janela abaixo —
Da mesma forma, a “marginalidade” de Pessoa o impulsiona a inventar uma sociedade própria. Em sua peça “O Marinheiro”, o personagem fala de um náufrago que, por sofrer demais ao se lembrar da vida pregressa, inventa um passado imaginado e uma pátria fictícia com pessoas, geografia e eventos históricos inventados que, aos poucos, substituem as memórias reais dele. Em “O Livro do Desassossego”, Pessoa anseia por criar em si uma nação com sua própria política, partidos e revoluções, a fim de ser tudo, ser Deus no panteímo real dessas pessoas – ser a substância e o movimento dos corpos e almas delas, do chão que elas pisam e dos atos que realizam.
A expansão e exaltação infinitas do ser, de modo que ele exista tanto como um deus quanto como um demônio, dando origem a um reino autocentrado de Paraíso na terra, embora essa nação – com suas “festas e revoluções” – fosse fragmentada e confusa. Entre amigos, Pessoa gosta de “defender ardentemente uma ideia num dia para atacá-la no outro, sempre com argumentos igualmente racionais”, escreve Zenith. Ainda que os modernistas mais românticos buscassem um “idioma não-fragmentado”, como dizia o poeta norte-americano Hart Crane) com que pudesse expressar o inexpressável, o idioma pessoano era infinitamente fragmentado, cheio de truques e evasivas, rico em filosofias e ideias que ele desenvolvia até o fim do poema e às vezes sem ir além. Em vez de tentar integrar suas motivações díspares num único ser, ele dava ênfase às contradições. Ele criava novas personalidades como que por partenogênese, dando a elas vidas independentes.
Entre essas personalidades estava o “semi-heteronômio” Bernardo Soares, suposto autor da obra-prima da prosa pessoana, “O Livro do Desassossego”. Essa “autobiografia sem fatos”, como Pessoa/Soares a ela se refere, foi publicada pela primeira vez em 1982 (47 anos depois da morte de Pessoa), e as edições seguintes ampliaram e reordenaram o conteúdo dela. Por isso há muitas discordâncias entre editores e estudiosos. Folhas dispersas que começam em 1913 e consiste de verbetes irregularmente datados e compostos ao longo de mais ou menos 20 anos, alguns trechos escritos à mão, outros à máquina, sem ordem ou plano identificável, ainda assim “O Livro do Desassossego” é uma descoberta impressionante. Poucas obras póstumas provocaram uma reavaliação tão intensa do trabalho anterior do autor.
“Faço paisagens com o que sinto”, escreve Soares. “O Livro do Desassossego” faz com que o leitor se depare com a vida de outro homem perdido no bosque escuro de sua interioridade. Mas de quem exatamente é essa interioridade? A autoria heteronômica do livro mudou com o tempo; de toda forma, Pessoa o atribuiu a Soares, um assistente administrativo que vive numa pensão na Rua dos Douradores, escrevendo quando dá. Soares defende a inação, vive em imaginação e, aqui e ali, vê seus compatriotas portugueses como “uma maré estranha de coisas vivas que não me preocupam”. Menos individualizado do que Caeiro, Reis e Álvaro de Campos, Soares é uma espécie de clone de Pessoa, dotado de sua ironia, mas não humor. Esse diário semifictício é uma espécie de biblioteca in utero; muitas de suas 500 passagens soam como ideias para livros não escritos, excertos que um escritor mais combativo teria usado para lançar campanhas inteiras.
Escrito ao longo de uma vida, “O Livro do Desassossego” exibe vários estilos e gêneros, de cenas de sonhos a poemas em prosa, passando por confissões e observações culturais, análises sociológicas e aforismos dignos de um Kafka. Mesmo que você não seja passivo e sonhador como Soares, entende quando ele diz que “está sofrendo de uma enxaqueca e do universo”. O Paraíso, para Soares, é uma paralisia eterna, tudo imóvel: um mundo no qual “um mesmo instante de poente pinta as colinas”, uma vida que parece “uma eterna vista da janela” – porque, mesmo no Paraíso, ele se imagina um alienado e um observador distanciado do cenário. “O Livro do Desassossego nunca deixa de ser uma experiência sobre quão autossuficiente um homem pode ser psicológica e afetivamente, vivendo apenas em meio a seus sonhos e imaginação”, escreve Zenith. “Era uma versão extrema e maníaca da forma essencialmente imaginária de Pessoa viver a vida”.
Provavelmente era um mecanismo de defesa. No mundo das fantasias a mãe não se lança repentinamente nos braços de outro homem e irmãozinhos não morrem. Soares está tomado pelo tédio, mas o tédio é um preço baixo a pagar. “As ficções da minha imaginação (…) podem até me desgastar, mas não me magoam nem humilham”, diz. “Eles nunca me abandonam, não morrem nem desaparecem”.
Os Estados Unidos do século XXI, com seu culto à ação e ao pensamento positivo, dificilmente saberia o que fazer de um Soares sonhador e inerte, ainda mais levando em conta que o sublime narcisista (ou uma cópia degradada) se transformaram em nossa cultura dominante. Além disso, numa época em que alguns indivíduos afirmam ser incapazes de se ater a um único gênero, muito menos em qualquer outra identidade inequívoca, estamos preparados para aceitar o que Zenith chama de “poética da individualidade fragmentada” de Pessoa. Há momentos em “O Livro do Desassossego” em que Pessoa rompe a máscara autoral, nem que seja para afirmar a máscara de toda a vida: “Para criar, destruí-me. Eu me exteriorizei tanto por dentro que não existo lá exceto externamente. Sou o palco vazio onde vários atores encenam várias peças”. O triunfo de seu empreendimento heteronímico é como aquele almejado pelos que hoje praticam o “manifestar”: o triunfo de uma ideia transcendida em vida.
O espírito pessoano – embora sem seu gênio – está vivo e bem. Ele vive em fóruns do Reddit, chats do Twitch, feeds do Twitter e outras redes nas quais o anonimato ou pseudônimo é comum e nas quais até mesmo os escolhidos do selinho azul que usam nomes reais vestem uma máscara. O “eu”, antes singular, se divide ou se transforma em heterônimo. Os espaços online são ruidosos com as personagens que despertamos.
Sei disso por experiência própria. No verão de 2021, mergulhei no mundo dos tokens não fungíveis (NFT)– itens digitais que são comprovadamente únicos e cuja propriedade pode ser verificada publicamente por uma blockchain. NFTs representam uma nova fronteira da arte, dos itens colecionáveis, dos jogos e da cultura pop. Nesse mundo, nem mesmo alguns dos maiores artistas e colecionadores usam seus nomes reais. Em vez de autorretratos, eles usam avatares como identidades visuais. Nesta cena, “anon” – o primeiro grande heterônimo inglês de Pessoa – é uma forma comum de se dirigir a um compatriota cuja identidade no mundo real você talvez nunca conheça.
Para participar desse mundo, eu precisava de uma personagem. Então criei uma conta no Twitter, registrei domínios que combinassem com ela e lancei meu alter ego naquele ambiente claustrofóbico. Mais gregário do que o normal, para mim foi fácil fazer amigos e criar laços usando esse disfarce. O verdadeiro eu, tal como ele era (tons de Whitman novamente), ficou em segundo plano. E funcionou: em três meses, ganhei 1.000 seguidores e a reputação de colecionador sério. Somos o que sonhamos ser, diz Pessoa. Por meio do olhar dele, passei a ver a Internet como um lugar onde abundam heterônimos que lançam grandes sombras e criam suas próprias lendas. Do criador do Bitcoin, Satoshi Nakamoto, ao mestre conspirador Q, essas identidades moldam a vida de milhões.
Quem, então, é o verdadeiro Pessoa? Um sonho sonhado por ninguém, refletia ele às vezes — da mesma forma que Borges imaginou Shakespeare em “Ficções”. Um dos poemas mais fortes de Pessoa, “Tabacaria”, começa assim:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Na história de Borges, Shakespeare está no fim da vida e, tendo “sido tantos homens em vão”, pede a Deus que lhe dê finalmente uma identidade para chamar de sua. Em meio a um redemoinho, a voz do Senhor responde: “Nem Eu sou ninguém; sonhei o mundo como você sonhou sua obra, meu Shakespeare, e entre as formas do Meu sonho está você, que, como Eu, é muitos e ninguém”.
Querendo ser todos e temendo não ser ninguém, nos seus momentos de fúria Pessoa entrava em contato com o núcleo inabalável do seu caleidoscópio de eus. Recusando-se a suprimir ou falsificar seus conflitos internos, ele exibia uma espécie de autenticidade radical. “Mesmo que o que pretendemos ser (porque coexistimos com os outros) desmorone ao nosso redor, devemos permanecer destemidos”, escreve ele, exortando os leitores em “O Livro do Desassossego”, porque “somos nós mesmos, e ser nós mesmos significa não ter nada a ver com coisas externas que desmoronam, mesmo que desmoronem em cima do que para elas somos”.
Quase 90 anos após sua morte, o melhor da poesia e da prosa desse fingidor inveterado está longe de desmoronar.
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