Direito eleitoral
Por
Rodolfo Costa
Brasília
Bolsonaro discurso no plenário do Senado, durante solenidade de promulgação da PEC dos Benefícios.| Foto: Alan Santos/PR
O Brasil vive sob a estrutura de um Estado Democrático de Direito que prevê a separação entre poderes, cada um com suas responsabilidades. Mas a aprovação e promulgação da chamada PEC dos Benefícios, pacote debatido pelo Congresso e que não passou por sanção presidencial por se tratar de emenda constitucional, está servindo de motor para uma futura contestação à campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Apesar de o texto final da PEC ter recebido o apoio da maioria dos congressistas, inclusive da oposição, o Partido Novo e parte dos formadores de opinião alegam ver motivos eleitoreiros na aprovação do pacote – o que poderia ser usado como justificativa para uma investigação da chapa presidencial no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Construir uma argumentação jurídica com base na PEC que possa colocar em risco a campanha presidencial, no entanto, parece ser bem difícil, como relatam fontes do meio jurídico ouvidas pela Gazeta do Povo.
O partido Novo promete ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra a PEC – que agora não é tecnicamente mais uma PEC (proposta de emenda constitucional), mas sim um conjunto de emendas, já que o Congresso as promulgou na quinta-feira (14).
A coordenação jurídica do Novo também discute sobre a possibilidade de pedir ao TSE a responsabilização da candidatura de Bolsonaro. A tese jurídica seria amparada nas chamadas “condutas vedadas” – um conjunto de ações proibidas pelo artigo 73 da Lei 9.504/97, a Lei das Eleições, por ter a capacidade de interferir na lisura e no equilíbrio das eleições ao afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos. Por violação das condutas vedadas pela Lei Eleitoral, uma candidatura pode ter o registro ou mandato cassado.
A tendência é que a decisão do Novo de ingressar ou não com uma ação no TSE seja tomada somente após o STF julgar a constitucionalidade da matéria.
Advogados e professores de direito eleitoral ouvidos pela reportagem entendem que uma possível declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo poderia abrir caminho para ações no âmbito eleitoral. Mas ainda assim a tese careceria de materialidade e responsabilidade, já que qualquer deputado e senador que voltou a favor da PEC dos Benefícios também poderia ter a candidatura questionada, inclusive parlamentares da oposição.
O professor de direito constitucional e advogado em direito eleitoral Renato Ribeiro, coordenador acadêmico da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), entende que as dificuldades em se fazer provas numa estratégia processual inviabilizam a possibilidade de avançar na Justiça Eleitoral processos contra Bolsonaro ou aliados. “No caso da participação do presidente da República, ela não se dá por maneira direta, mas, sim, por meio dos parlamentares [que aprovaram a PEC], por mais que seja grande a vinculação com a Presidência”, diz.
Segundo Ribeiro, a demanda legal precisaria excluir os congressistas, que são, na realidade, os agentes que aprovaram o texto final. “Para o abuso de poder político, nós teríamos uma dificuldade probatória. É difícil comprovar com provas robustas que houve responsabilização e participação direta do presidente excluindo todos os parlamentares”, diz.
Por lógica semelhante, o advogado também identifica dificuldades em processos contra aliados do presidente. “Teria que responsabilizar todo o Congresso, não um ou outro nome”, justifica.
A professora de direito eleitoral e consultora jurídica Amanda Cunha, integrante da Abradep, afirma que um processo eleitoral com base na PEC dos Benefícios contra Bolsonaro e congressistas também dependeria de outras variáveis. Além disso, ela diz que construir uma estratégia para responsabilizá-los pode não ser simples.
Uma das variáveis é a própria confirmação das pré-candidaturas. Segundo Amanda, sem a candidatura, não há como se falar de um eventual benefício eleitoral. Todavia, ela afirma que isso não impediria que a Justiça eleitoral deferisse uma medida cautelar para resguardar a igualdade entre os pré-candidatos.
No caso dos congressistas, a possibilidade de processo dependeria da utilização retórica da aprovação da PEC para pedir votos. A hipótese de responsabilização deles, porém, é vista como excepcional na opinião de Amanda, tendo em vista que os recursos serão pagos pelo Executivo, especialmente o governo federal. “Poderia haver alguma correlação entre usarem o papel na aprovação para fins eleitorais, mas isso dependeria do caso concreto”, afirma a especialista. No caso do presidente, a hipótese de responsabilização é analisada por ela como mais concreta, ainda que ele não faça uso dessa aprovação em campanha.
A professora diz ainda que construir uma estratégia para responsabilizá-los pode não ser simples principalmente no que diz respeito a uma eventual acusação de abuso de poder econômico. Nesse caso, seria preciso comprovar não apenas a conduta vedada pela Lei Eleitoral, como também o uso irregular dos recursos e demonstrar uma repercussão e alcance das medidas a ponto de elas afetarem o pleito como um todo, não só a igualdade de oportunidades entre candidatos, mas também a legitimidade da eleição.
“Só pela simples aprovação da PEC não dá para responsabilizar diretamente. Teria que comprovar um uso desses benefícios conferidos a título de propaganda eleitoral, por exemplo, ou de conferir qualidades a esses políticos com fins eleitorais, de campanha”, diz. “Essa é a dificuldade, de trazer os elementos e identificar se foi utilizado para fins eleitorais já provados.” Segundo ela, isso ocorre porque “a responsabilização pela Justiça Eleitoral tem alguns requisitos a serem verificados nos casos concretos”.
A advogada e professora em direito eleitoral Isabel Mota, coordenadora de comunicação da Abradep, diz que a obtenção de provas é um dos motivos pelo qual os partidos e eventuais interessados em processar o presidente ou parlamentares vão fazer uma análise criteriosa antes de tomar uma decisão.
“Uma ação dessas normalmente só se propõe com indícios e provas já na propositura, pois é preciso ficar materializado os atos de como isso vai repercutir para ter provas e visualizar. Então, é melhor até deixar que esses elementos se configurem de forma mais explícita [durante a campanha], ou seja, perceber o movimento de impacto eleitoral decorrente da implementação dessa emenda constitucional de modo a beneficiar ilicitamente o pré-candidato”, diz Isabel.
Apesar disso, Isabel diz ver a PEC com preocupação. “Essa PEC foi chamada de ‘kamikaze’ porque tem efeito avassalador sobre a economia e pode realmente gerar benefícios e dividendos eleitorais”, afirma Isabel. “Há quem entenda que ela [a PEC] tenta possibilitar que a compra de voto seja institucionalizada. Me preocupa mais é ela não apenas ampliar e criar benefícios até dezembro, mas também por ser uma propositura que ocorre às vésperas das convenções [partidárias].”
No caso específico de Bolsonaro, há ainda um elemento adicional que pode ser alegado para uma tentativa de responsabilização eleitoral mais direta, na visão de alguns especialistas. A justificativa seria de que o presidente da República é o ordenador das despesas – ou seja, quem ordena o pagamento dos benefícios previstos na PEC. “Seria ele o ordenador das despesas, quem conferiria os recursos e incorreria na conduta em si de dar os benefícios e executar as transferências [dos valores]”, diz Amanda.
Além de tudo isso, na avaliação dos especialistas, não é impossível que surjam questionamentos a Bolsonaro e a congressistas na Justiça Eleitoral mesmo que eventuais atos eleitorais envolvendo a PEC dos Benefícios não sejam praticados diretamente pelos candidatos.
Mesmo cabos eleitorais de alguma candidatura que fizerem uso retórico da PEC ou como forma de propaganda poderiam causar problemas para seus candidatos. “Basta que uma pessoa que seja da campanha ou esteja relacionada diretamente a ela e faça uso do pagamento dos benefícios [da PEC] e da redução dos tributos em benefício dessas pessoas. É o que chamamos de beneficiários das condutas”, diz Amanda. “Existem críticas e discussões sobre até que ponto o candidato tem que ser responsabilizado por tudo que se faça no nome dele. Mas são contornos que a Justiça Eleitoral hoje considera.”
Decreto e lei assinados por Bolsonaro podem ser relacionados à PEC
Especialistas em direito eleitoral ouvidos pela Gazeta do Povo dizem que é possível ainda que, numa ação eleitoral, possa ser alegada uma conexão da PEC (agora emenda constitucional) com uma lei e um decreto assinados por Bolsonaro que tratam de temas relacionados. E, nesse caso, poderia ser argumentada uma responsabilidade mais objetiva do presidente do que apenas com a PEC.
Esses dois dispositivos assinados pelo presidente são a Lei Complementar (LC) 194/22, que fixa um teto para o ICMS cobrado pelos estados sobre combustíveis; e o Decreto 11.121/22, que obriga os donos de postos a informar, em separado aos preços atuais, o valor dos combustíveis cobrados em 22 de junho.
Ocorre que a PEC dos Benefícios, entre outros pontos, prevê a destinação de R$ 3,8 bilhões para compensar os estados que reduzirem as alíquotas de ICMS sobre o etanol em decorrência dos efeitos da LC 194/22, sancionada por Bolsonaro em 23 de junho. Como o Decreto 11.121 obriga os postos a informarem preços praticados um dia antes da sanção da lei, o entendimento de alguns juristas é de que pode ser argumentada na Justiça Eleitoral uma conexão das três medidas para questionar a candidatura de Bolsonaro sob a argumentação de que o presidente se beneficiou eleitoralmente, em desacordo com as condutas vedadas pela legislação que rege o processo eleitoral.
“Criou-se pela LC 194 uma política tributária que significa um benefício direto ao consumidor com renúncia de receita. A lei eleitoral, porém, proíbe que em ano eleitoral sejam oferecidos benefícios de maneira direta, como uma cesta básica ou um auxílio, ou indireta, como reduzir um tributo para que, na ponta final, o consumidor pague menos por alguma coisa. Ou seja, só está pagando menos pois o governo obrigou os estados a fazerem renúncia de receitas que serão compensadas pela emenda constitucional”, explica Guilherme Gonçalves, sócio da GSG Advocacia e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Segundo Gonçalves, pode-se argumentar que a responsabilização eleitoral de Bolsonaro é direta e objetiva, uma vez que a lei e o decreto são instrumentos de sua autoria que atuam complementarmente aos efeitos da PEC. Para ele, isso pode ser usado na Justiça Eleitoral contra Bolsonaro sob o argumento de ele abusou do poder com objetivos eleitorais.
A professora de direito eleitoral e consultora jurídica Amanda Cunha também acredita que a argumentação de conexão entre a PEC, a lei e o decreto pode se aproximar de uma responsabilização “direta” a Bolsonaro. Segundo ela, isso pode ocorrer por causa da sequência de fatos que levariam ao entendimento de que ele está afetando o processo eleitoral.
Entre as proibições previstas pela Lei Eleitoral, destacam-se a realização de transferência voluntária de recursos da União aos estados e municípios e dos estados aos municípios, nos três meses que antecedem as eleições, além da distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública. A exceção para a distribuição é válida para os casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no ano anterior à eleição.
Para evitar questionamentos eleitorais à PEC, a base do governo propôs a criação de um estado de emergência por meio de emenda constitucional, aprovado por ampla maioria dos deputados e senadores.
Ocorre, porém, que há quem considere que a constitucionalidade da PEC é discutível. A começar pela criação de um estado de excepcionalidade por meio de uma PEC, não por decreto presidencial. Isso poderia configurar vício de iniciativa na avaliação de especialistas em direito eleitoral. Ou seja, apenas o Executivo poderia decretar o estado de emergência – e não o Congresso. Além disso, há especialistas que não identificam justifica plausível para a decretação da emergência, mesmo que seja por emenda.
A constitucionalidade da PEC também é questionada a partir do entendimento de que viola princípios constitucionais em relação ao sistema financeiro e tributário. No entendimento de alguns juristas, ela agride a emenda constitucional 95/2016, que trata do teto de gastos, e a 109/2021, que concedeu às administrações subnacionais mais cinco anos de prazo para pagamento de seus precatórios. Na prática, os efeitos da PEC dos Benefícios provocariam uma sobreposição e afastamento dos efeitos das demais emendas sobre controle e análise dos resultados fiscais acerca da trajetória do endividamento público.
A consultora jurídica Amanda Cunha diz que a possibilidade de o STF declarar a PEC inconstitucional sugeriria de forma objetiva que Bolsonaro e o Congresso incorreram em abuso de poder político, ou seja, que desrespeitaram os princípios do que dispõe as condutas vedadas da legislação eleitoral.
A especialista entende que não há justificativa para a criação do estado de emergência e, portanto, afirma que não cabe criação do auxilio para caminhoneiros e taxistas, nem a ampliação de recursos para o Auxílio Brasil, o Auxílio-Gás e o Alimenta Brasil.
Mesmo o reforço orçamentário para programas sociais existentes também dependeria da implementação de um estado de emergência. “O simples fato de distribuir os recursos já acarreta em desequilíbrio de igualdade e oportunidades [entre candidatos]”, diz Amanda. “Seria mais fácil de imputar sanções, inclusive para beneficiários que não cometeram os atos, como o presidente da República, que não aprovou a PEC diretamente, mas que pode se utilizar disso para promoção pessoal”, complementa.
O que dizem Bolsonaro e o relator da PEC dos Benefícios
Em conversa com jornalistas, Bolsonaro rechaçou a tese de que a PEC dos Benefícios tenha um caráter eleitoreiro. “Vocês batem em mim, grande parte da imprensa, quando tivemos inflação aumentando – o que é verdade… Foi no mundo todo, por causa da política do fica em casa [por causa da pandemia de Covid-19]. Quando a gente apresenta uma maneira de ajudar os mais necessitados, diminuir preço de combustíveis, a PEC é eleitoreira? Meu Deus do céu”, disse na segunda-feira (11).
A coordenação jurídica da pré-campanha de Bolsonaro evita comentar sobre a hipótese de processo contra a campanha do presidente. Interlocutores da campanha afirmam que uma eventual estratégia de defesa no TSE será analisada apenas caso surja, de fato, uma ação.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, também saiu em defesa da PEC. Em declaração a jornalistas na quinta-feira (14), disse que a medida não é eleitoreira e nem piora as contas públicas. “Tem que escolher: se as pessoas estão passando fome e cozinhando a lenha, os programas de benefícios não são eleitoreiros. Se são, não tinha ninguém passando fome e cozinhando a lenha”, declarou.
O relator da PEC dos Benefícios, deputado federal Christino Aureo (PP-RJ), discorda das críticas e análises de quem tacha a proposta como eleitoreira. “Não vejo como classificá-la puramente como eleitoreira, porque ela é fruto de uma discussão que não começou agora”, declarou em entrevista à CNN Brasil no domingo (10).
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