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Por
Eli Vieira
Bandeira do movimento “antifa” em Viena, Áustria, em 2020. Os antifas usam de uma suposta oposição ao fascismo como desculpa para violência nas ruas na defesa de pautas de esquerda.| Foto: EFE / EPA / Florian Wieser
Em 15 de abril de 2017, um sábado, manifestantes pró-Donald Trump organizaram uma marcha pela liberdade de expressão em Berkeley, Califórnia. Os comunistas e “antifascistas”, que usam a abreviação “antifa”, também estiveram presentes. Logo começou um bate-boca e a polícia criou uma área neutra entre as duas tribos, informou o jornal local sem fins lucrativos Berkeleyside. Milhares estavam presentes. Uma bandeira americana foi queimada. Logo as discussões escalaram para violência e 20 pessoas foram presas e 11 ficaram feridas.
O ativista de direita Kyle Chapman, que já havia sido preso duas vezes, disse em caixa de som que estava lá para combater o “terrorismo doméstico e o comunismo”. O jornal notou, com surpresa, que ele não carregava um porrete naquele dia. Já o professor universitário de filosofia Eric Clanton tinha outros planos. Com o rosto coberto por capuz, máscara e óculos escuros, todo de preto, ele usou um cadeado de bicicleta para desferir golpes na cabeça de um manifestante. As imagens da cabeça ensanguentada da vítima viralizaram. Segundo a polícia, era a sétima pessoa atacada dessa forma pelo professor antifa, que foi condenado à liberdade condicional por três anos. Na casa dele, a polícia encontrou vários sinais de aderência ao comunismo, “antifascismo” e anarquismo. Ele tem uma tatuagem antifa em um braço.
Se, naquele ano, alguém buscasse entender o que estava acontecendo em Berkeley em artigos de psicologia social, descobriria que somente Kyle seria considerado um autoritário por um amplo consenso da área. Não Eric. É porque só no ano passado a área começou a aceitar que existe autoritarismo de esquerda.
Influência da teoria crítica
A ideia de que somente a direita pode ser autoritária foi defendida por ao menos dois expoentes da “teoria crítica” da escola de Frankfurt, uma vertente acadêmica que busca mudar a sociedade pela análise de relações de poder. Críticos a chamam de “marxismo cultural”. Um dos expoentes foi Theodor Adorno (1903-1969).
Foi na própria cidade de Berkeley, que tem um campus da Universidade da Califórnia, que Adorno lançou em 1950 o livro A Personalidade Autoritária, de quase mil páginas, com dois sociólogos da universidade e uma psicanalista como coautores. Entre outros métodos, o livro apresenta um teste de autoritarismo, a escala F — F de fascismo. Ela é baseada em nove dimensões de um “protofascista”: convencionalidade, submissão, agressividade, subjetividade, supersticiosidade, dureza, cinismo, projeção de respostas emocionais inconscientes ao mundo e preocupação exagerada com sexo.
A sociedade americana contém a semente do fascismo, concluiu Adorno, pois os americanos dão muita importância a famílias e seus chefes: o fascismo seria uma reaplicação desse padrão das famílias para um contexto social maior.
O livro atraiu crítica imediata. Com base em trabalhos mais equilibrados como As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt (1951), o sociólogo da Universidade de Chicago Edward Shils comentou naquela década que não fazia sentido falar de autoritarismo como exclusividade da direita. “O fascismo e o bolchevismo, considerados muito distantes entre si poucas décadas atrás, agora são vistos cada vez mais como compartilhando muitas características importantes”, disse ele, apontando também que os Estados Unidos tinham stalinistas que também adoravam o poder e desprezavam os fracos.
O outro nome importante da escola de Frankfurt, Herbert Marcuse (1898-1979), foi mais direto que Adorno. Sem perder tempo com testes de personalidade, Marcuse declarou na obra Uma Crítica à Tolerância Pura (1969) que “a tolerância libertadora, então, significaria a intolerância contra movimentos de direita, e tolerância aos movimentos de esquerda”.
Hans Eysenck (1916–1997), eminente psicólogo germano-britânico e pioneiro no estudo da personalidade, diz em sua autobiografia (1997) que propôs e testou a hipótese de as personalidades diferirem quanto à política em um eixo de “mentalidade dura” e “mentalidade tenra”. “Os fascistas, na direita, [e] os comunistas, na esquerda, tinham mentalidade dura, os liberais tinham mentalidade tenra e intermediária entre direita e esquerda, enquanto os membros dos partidos [britânicos] Conservador e Trabalhista (…) estavam na média quanto à mentalidade dura vs. tenra”, classifica o psicólogo. Ele publicou um livro a respeito, A Psicologia da Política (1954), “que na essência contém a advertência na época impalatável de que havia fascismo na esquerda (…) e que a dureza de mentalidade unia os comunistas e os fascistas num vínculo em comum”. A advertência de Eysenck terminou ignorada e a psicologia social preferiu Adorno.
Refinamento da teoria crítica
Apesar da má recepção da obra de Adorno, Bob Altemeyer, octagenário professor canadense de psicologia da Universidade de Manitoba, Canadá, considerou que a teoria e o método poderiam ser refinados. Em obras como Inimigos da Liberdade: Entendendo o Autoritarismo de Direita (trad. livre), de 1988, o canadense apresenta o autoritarismo de direita como caracterizado por três pontos principais: obediência e deferência a autoridades estabelecidas; aderência a normas socialmente conservadoras; e forte aprovação ao controle social punitivo e coercitivo.
O conceito de Altemeyer é “o padrão ouro” da psicologia social para caracterizar o autoritarismo, declaram Thomas Costello, psicólogo da Universidade Emory em Atlanta, e colaboradores em um artigo deste ano publicado no Journal of Personality and Social Psychology, revista da Associação Americana de Psicologia. Enquanto isso, os autores informam o autoritarismo de esquerda é amplamente conhecido como “o Monstro do Lago Ness” da área e que haveria “evidências sistemáticas escassas” para a sua existência.
Costello e colegas, entretanto, já lançam um desafio a esse estado da arte. “Demonstramos a utilidade de conceptualizar e medir formas esquerdistas de autoritarismo, desafiando retratos longevos do autoritarismo de esquerda como o ‘Monstro do Lago Ness’ da psicologia política.”
Ortodoxia desafiada
O artigo de Thomas Costello e colegas foi pioneiro ao propor um Índice de Autoritarismo de Esquerda. Ele é definido por uma constelação de características psicológicas: preconceito contra pessoas diferentes, disposição a usar a autoridade coletiva para coagir o comportamento alheio, rigidez cognitiva, agressividade e punição contra inimigos percebidos, sobrevalorização de hierarquias de status e absolutismo moral, entre outras.
O índice, que tem 39 pontos, partilha características com o autoritarismo de direita, como a falta de humildade e o dogmatismo. Uma nota alta no Índice de Autoritarismo de Esquerda é preditiva de aversão a germes, adesão a políticas e práticas autoritárias para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19, e oposição a liberdades civis fundamentais, como já mostraram estudos nesse curto prazo de um ano desde que ele foi proposto.
O próprio Costello, em artigo mais recente com co-autoria de Christopher Patrick, da Universidade Estadual da Flórida, faz a ressalva de que seu índice precisa de ajustes como a redução de pontos a considerar. “Atualmente, é difícil saber se determinadas características são centrais ou periféricas ao autoritarismo, e a que medida”, dizem os cientistas. Além disso, eles não sabem ao certo quais dos 39 pontos são mais característicos do autoritarismo esquerdista ou do autoritarismo em geral.
Costello e Patrick tentaram nesse estudo gerar uma versão mais abreviada do índice, testá-la com dados empíricos preliminares e validar o conceito de autoritarismo de esquerda com mais profundidade. Eles conseguiram reduzir os 39 itens do índice para 25 ou 13, sem grandes perdas, mas recomendam que a escala completa continue sendo usada para maior precisão no nível individual, e que as versões abreviadas sejam aplicadas em grupos grandes ou situações em que os pesquisadores dispõem de poucos recursos. Propuseram, também, quais elementos seriam mais específicos dos autoritários de esquerda:
Agressividade anti-hierárquica: atitude que favorece a remoção da ordem estabelecida e punição aos detentores do poder pelo uso de violência ou coerções não-democráticas. Uma das frases para expressar essa atitude no teste foi “Devemos arrancar os bens e o status dos ricos”.
Anticonvencionalismo: um desejo de acabar com o conservadorismo que se reflete em intolerância. Algumas das frases mais informativas do teste foram “No fundo, quase todos os conservadores são racistas, sexistas e homofóbicos” e “Os conservadores são moralmente inferiores aos progressistas”. Ou seja, autoritários de esquerda tendem a concordar com essas afirmações.
Censura de cima para baixo: um desejo de utilizar autoridade sobre o grupo, como a autoridade estatal, para suprimir crenças e comportamentos dos quais se discorda. Uma das frases mais informativas: “As autoridades universitárias estão certas em banir o discurso de ódio do campus”.
Reajuste na psicologia social
Como a ideia de que somente a direita pode ser autoritária é radical demais e conflita com diversos eventos históricos, há uma alternativa menos radical na psicologia social: a tese de que há uma assimetria entre a direita e a esquerda. A esquerda pode ser autoritária, reconhecem teóricos como John Jost, professor de psicologia e política na Universidade de Nova York, mas a direita seria mais autoritária, preconceituosa e estreita em pensamento.
Se Jost tem razão em insistir nessa nova versão de atribuir o autoritarismo mais à direita que à esquerda, só o tempo dirá enquanto os psicólogos sociais reajustam sua área ao novo paradigma em que o autoritarismo não mais é considerado monopólio da direita.
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