Editorial
Gazeta do Povo


Presidente Jair Bolsonaro compartilhou sua insegurança com as urnas eletrônicas a representantes de outros países.| Foto: Joédson Alves/EFE

A controvérsia sobre o voto eletrônico nas eleições de outubro já deveria estar devidamente encerrada há um bom tempo, mas os dois principais atores envolvidos na discussão têm se empenhado, cada um à sua maneira, em estabelecer uma verdadeira conversa de loucos. O último episódio foi a reunião entre o presidente Jair Bolsonaro e dezenas de embaixadores – alguns países enviaram outros representantes, como encarregados de negócios –, e a subsequente resposta do Tribunal Superior Eleitoral às alegações feitas pelo presidente no encontro, que aliás era uma resposta do Planalto a evento semelhante realizado pelo próprio TSE, com a participação de diplomatas, em maio.

Em agosto de 2021, a Câmara dos Deputados derrubou a PEC do Voto Impresso, que teve a seu favor uma pequena maioria, mas ficou longe dos 308 votos necessários para a aprovação de uma emenda à Constituição. Por mais criticável que fosse a atuação de ministros do Supremo Tribunal Federal e do TSE na articulação política contra a PEC, quebrando a imparcialidade que se espera de magistrados, a derrota da proposta é de responsabilidade não dos ministros, mas dos próprios deputados e da falta de articulação do Planalto e dos seus líderes no parlamento. Com a voz dos representantes do povo se fazendo ouvir por meio da votação da PEC, aquele era o momento de se virar definitivamente a página, mas não foi o que ocorreu.

A desqualificação a priori do processo eleitoral, ou a insinuação de que já está em curso todo um esquema destinado a roubar a eleição, sem provas disso, é extremamente problemática

O TSE, fortalecido pela derrota da PEC, encastelou-se e transformou a lisura da urna eletrônica em um dogma, um tabu, a ponto de perseguir, pela via judicial, muitos brasileiros que fizeram e ainda fazem questionamentos pertinentes a respeito de possibilidades de aprimoramento da votação eletrônica. A corte não está se limitando a perseguir quem espalha a mentira pura e simples com o objetivo de desqualificar o sistema de votação, mas pretende calar até mesmo críticas de caráter técnico quanto a possíveis vulnerabilidades. A urna funciona, a urna é inviolável, o sistema é perfeito, e quem levantar a menor dúvida sobre isso haverá de se ver conosco, parece ser a mensagem enviada pelo TSE, cujos ministros ainda se julgam livres para percorrer o mundo espalhando a narrativa de que há um golpe de Estado prestes a ocorrer no país.

Mas o presidente Jair Bolsonaro, no entanto, dá alguma razão a essa narrativa quando trilha um caminho ainda mais grave que o da corte eleitoral ao deslegitimar a priori todo o processo, uma atitude cujas consequências são imprevisíveis. A mensagem que o presidente da República enviou aos embaixadores é tão simples quanto perigosa: a de que os resultados das eleições brasileiras não são confiáveis. E ele o faz sem apontar provas conclusivas de que tenha havido fraude nos pleitos presidenciais anteriores. Durante live em 7 de julho, Bolsonaro afirmou que levaria aos diplomatas estrangeiros informações “mostrando tudo o que aconteceu nas eleições de 2014, 2018, documentado”, uma referência a alegações de que o verdadeiro vencedor da eleição de 2014 fora o tucano Aécio Neves, e que Bolsonaro teria sido eleito já no primeiro turno em 2018. São afirmações que o presidente vem fazendo desde 2019, mas que não tem sido capaz de comprovar, e novamente não o fez diante dos embaixadores. Sem essa evidência, restou ao presidente apoiar-se em outro evento, a invasão de 2018 em que um hacker “passeou” por meses pelos sistemas internos do TSE. Por mais que se trate de uma brecha de segurança muito séria que não pode, de forma alguma, ser minimizada – e que deveria ter sido tornada pública, em primeiro lugar, pelo próprio TSE, com toda a transparência –, as investigações da Polícia Federal não estabeleceram relação entre a invasão da intranet do TSE e uma possível fraude eleitoral.


E isso nos encaminha ao centro da discussão, pois o questionamento sobre a lisura das eleições afeta o coração da democracia. A inquietação sobre possíveis vulnerabilidades tecnológicas ou falhas na governança do processo eleitoral é legítima, desde que exposta da forma mais precisa possível, apontando com clareza onde residem os problemas, para que eles possam ser analisados e levem a uma resposta que prime por essa mesma precisão; do contrário, uma exposição feita em termos genéricos ou a simples contestação do processo como um todo se tornam uma leviandade que coloca em risco a própria sociedade.

A necessidade dessa clareza total na exposição de contestações é ainda mais necessária quando levamos em conta que as evidências de uma fraude eleitoral só costumam aparecer a posteriori, ou seja, depois que o pleito já ocorreu – a única exceção seria o caso de algum insider denunciar e comprovar um esquema ainda em andamento, destinado a violar a lisura de um pleito futuro. Se Bolsonaro efetivamente tivesse provas sólidas a respeito dos resultados de 2014 e 2018, estaríamos diante de algo gravíssimo; e se ele for capaz de apontar indícios consistentes de fraude depois de outubro deste ano, não há dúvidas de que será necessário tomar todas as medidas cabíveis, até mesmo com a anulação da votação fraudada e a realização de nova eleição. Mas a desqualificação a priori do processo eleitoral, ou a insinuação de que já está em curso todo um esquema destinado a roubar a eleição, sem provas disso, é extremamente problemática.

O TSE transformou a lisura da urna eletrônica em um dogma, um tabu, a ponto de perseguir, pela via judicial, muitos brasileiros que fizeram e ainda fazem questionamentos pertinentes a respeito de possibilidades de aprimoramento da votação eletrônica

O raciocínio que atesta a limpeza do pleito tomando como critério o seu resultado (“se eu vencer, é porque a eleição foi limpa; se eu perder, foi porque houve fraude”), além de primário, poderá servir a qualquer candidato derrotado – até mesmo para o petismo, caso o próprio Bolsonaro saia vencedor; o próprio Lula já colocou a urna eletrônica sob suspeita em 2002, e vários outros partidos fizeram o mesmo, afastando-se do assunto apenas quando ele se tornou plataforma de Bolsonaro. E um perdedor suficientemente influente terá, com isso, munição para causar convulsão nacional. Na mais benigna das hipóteses, é de uma enorme irresponsabilidade, que infelizmente o TSE acaba estimulando quando emite uma “nota de resposta” cheia de imprecisões e que, em alguns casos, simplesmente se esquiva de temas importantes, como a possibilidade de auditoria nas urnas e o fato de o Brasil ser um dos raros países que usam equipamentos defasados em comparação com urnas já disponíveis em outras nações.

A pacificação torna-se extremamente difícil nessas condições. A bem da verdade, o estado atual da disputa não dá margem nem mesmo à possibilidade de um aprimoramento significativo do processo eleitoral, pois, enquanto um lado deslegitima toda a votação, o outro se fecha a qualquer debate, limitando-se a aceitar sugestões de menor impacto. Tanto Bolsonaro quanto TSE se empenham em esticar a corda, mas é preciso afirmar que sim, a responsabilidade do presidente da República é maior, pois o potencial incendiário de seu discurso tem tudo para lançar o país no caos, a depender do que o eleitor disser daqui a poucos meses e de como os derrotados reagirem. Ainda estamos em tempo de desarmar esta bomba, mas ela exige que todos tenham mais clareza em palavras e atos, e demonstrem compromisso firme com a aceitação dos resultados da eleição, atitudes que até agora não têm vindo de nenhum dos lados.


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