Artigo
Por
Pedro Henrique Alves, especial para a Gazeta do Povo


Soldados patrulham as ruas do Complexo do Alemão, 21 de agosto de 2018, no Rio de Janeiro| Foto: EFE/Antonio Lacerda

É muito difícil explicar o Brasil político a um estrangeiro. Certa feita, enquanto conversava com alguns australianos, graduandos de filosofia, eu tentava explicar a eles como o liberalismo brasileiro se aproximava mais de um conservadorismo moral do que de um progressismo moderno europeu, aquele que fia sua esperança de arco-íris na benevolência fofa do Estado.

Era visível que não entendiam nossas particularidades ideológicas, amiúde, diziam-me, como podíamos sustentar mentalidades políticas típicas de guerra fria ainda hoje, no século XXI? Observei então que tudo se explica se entendermos que o Brasil é uma estranha mistura uniforme de pautas progressistas europeias com excitações melodramáticas de um sovietismo idílico que nunca foi superado pelos acadêmicos. Continuaram sem entender, mas tudo bem, eu só tinha 15 minutos para explicar aquilo que muitos jornalistas passam a vida toda sem entender.

Talvez naquelas democracias “família de margarina” consigamos conceber um debate público pautado, verdadeiramente, pelas ideias, preocupações e necessidades sociais dos indivíduos, do povo. Se fôssemos assim, aí, quem sabe, os gringos nos entenderiam. Mas aqui o debate público, mais especialmente rastreável através da ressonância das grandes mídias jornalísticas, é pautado pelas verdades dos sacrossantos redatores e repórteres de punhos cerrados.

Não é muito difícil notar o hiato grotesco que existe entre as ideias, vontades e preocupações do dito “populacho” e as preocupações e convicções gourmetizadas dos intelectuais altruístas que empunham sovieticamente suas penas. Há muito tempo, a dona Ana sequer sabe o que está na capa dos maiores jornais do país, muito menos se importa com as recomendações políticas da Anitta e com as superanálises dos “especialistas”; e isso tem tudo a ver com a realidade social e política do país, se você compreender o mundo para além dos óculos midiáticos.

As redações fizeram questão de usar repelentes contra as ideias populares com o intuito de construir seus mundinhos de alertas ambientais e sofrimentos sociais em slow motion sem nenhuma encheção de saco; eles são singularmente preocupados em criar narrativas para seus preferidos a fim de serem os heróis supremos – ou supremos iluministas – dessa estranha democracia que ignora o povo.

Encontro com o mundo real
Fato é que a sensação de encontro com o mundo real, aquele que Dylan O’Brien acha ao sair do labirinto em ‘Maze Runner’, ou o que Beatrice e Quatro encontram ao passar o muro da “cidade de perfeições” do thriller ‘Divergente’, é algo cada vez mais difícil de ser encontrado nos debates públicos, pois o debate público está discutindo ideias de confeitaria propostas por artesões da realidade que convém e não as ideias e dúvidas da dona Ana e do Bastião.

Como mostra o relato bíblico das tentações de Cristo no deserto, é muito mais efetivo distorcer a realidade do que simplesmente criar uma do zero, e é por isso que, após vídeos mostrarem o que parece ser verdadeiramente um sistema de artilharia antiaérea no complexo do Alemão no Rio de Janeiro, encontramos matérias como a que relaciona as mortes naquela favela à operação policial pura e simplesmente, como se a polícia tivesse entrado nas favelas em busca de colunistas de jornais, costureiras má educadas e jovens descorteses, e não de traficantes altamente perigosos e gerentes do crime organizado. O óbvio fato de que o complexo do Alemão seja hoje um espaço sem lei, um território do narcoestado, que os traficantes que ali presidem ostentam armas de guerra e atiram com fuzis sem nenhum tipo de recriminação, tudo isso é ignorado num frenesi militante que chega até a ser curioso de observar.

Essa é a nossa própria distopia cotidiana, que faz qualquer ‘Admirável Mundo Novo’ e ‘1984’ parecerem exageros bobos de escritores pedantes. Enquanto assistimos, através de nossas janelas, a traficantes empregando artilharias antiaéreas contra helicópteros da polícia, ao voltarmos os olhos para nossos celulares, encontramos matérias jornalísticas debatendo o enorme problema que há em o seu Geraldo ter comprado uma arma legal para defender sua família. Enquanto nossa polícia enfrenta uma quase insurreição armada do crime organizado no Rio de Janeiro e na fronteira com o Paraguai, nossos jornalistas engajados estão histéricos berrando como Bolsonaro ousou questionar o deus Urna Eletrônica.

O Bastião não entende como pode ser tão urgente e catastrófico alguns quilômetros da mata amazônica pegando fogo; a opinião da Alemanha e da França sobre isso; Bolsonaro ser um “fascista” porque disse algo que não agradou — o Bastião nem sabe o que é fascismo —; e nem como a polícia deveria combater o tráfico dos morros com retóricas, abraços afetuosos e recomendações da ONU. Depois que o Bastião fecha o jornal, ele encontra o mundo do jeitinho que ele deixou, e, no metrô até sua casa, coloca a mochila na frente da barriga porque podem surgir muitos daqueles “vulneráveis” — como dizem os jornalistas em suas salas seguras — para roubar o único sustento de sua família.

O Bastião, por fim, na limitação iletrada de sua formação, deve se questionar sinceramente sobre como a polícia combateria o crime organizado que tem morteiros, granadas e fuzis com mera conversa e apoios reconfortantes dos sociólogos. Todavia, ele sabe que seu sincero questionamento logo seria desprezado como tolice se fosse vocalizado de alguma forma, que ficaria com a face vermelha a partir do primeiro insulto de um “entendido sobre o assunto” ao explicar-lhe que a polícia é fascista e que ele é um reacionário burro.

Tais questionamentos são perigosos para os engenheiros de crises, eles têm aquele poder incômodo de abrir as janelas das redações para os ventos de fora que trazem a realidade sem nenhum lubrificante. É mais fácil, assim, ignorar a realidade e trancar as janelas, e ante os vídeos de policiais acossados por um sistema de armamento típico de guerras mundiais, fechar os olhos e escrever sobre como tais policiais são malvadões e como são, na verdade, os verdadeiros culpados pela morte da população refém do crime organizado, e não os criminosos… quero dizer: os “vulneráveis”.

É difícil explicar tudo isso a um estrangeiro sem parecer um completo demente, sem deixar transparecer – apesar de todo o cuidado – que somos uma nação alienada e idiotificada por esses jornalistas militantes. Tal como Orwell que escreveu a ‘Revolução dos Bichos’ para dar conta de expor todo o absurdo soviético que estava sendo perpetrado em seus dias sob os narizes enamorados dos jornalistas ocidentais, talvez reste aos poucos sensatos remanescentes tratar a realidade como uma distopia necessária, para ver se assim os adormecidos despertam para o óbvio gritante.


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