Especialista comenta estudo britânico que não enxergou evidências entre a doença e os níveis de serotonina dos pacientes. Medicamentos, pondera ele, são um divisor de águas no setor
Entrevista com
Jose Gallucci Neto, diretor do serviço de eletroconvulsoterapia (ECT) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade
Leon Ferrari, O Estado de S.Paulo
A demonização de remédios antidepressivos pode levar a uma piora na atenção à saúde mental, alerta o psiquiatra Jose Gallucci Neto, diretor do serviço de eletroconvulsoterapia (ECT) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Um estudo britânico publicado na revista científica Molecular Psychiatry disse não haver evidências “convincentes” de que a depressão esteja associada a baixas concentrações ou atividade de serotonina, eixo sobre o qual parte dos medicamentos tenta atuar.
Depressão não é causada por baixo nível de serotonina, diz estudo; isso muda uso de remédios?
Ele destaca que o estudo apenas aponta limitações de teoria do desequilíbrio químico – algo já difundido na área -, além de abrir portas para pesquisa da relação de outros neurotransmissores e também da investigação a longo prazo da eficácia de drogas antidepressivas.
“Jamais pare de tomar o seu antidepressivo sem orientação do seu psiquiatra”, orienta. A origem da depressão, explica o profissional, ainda não foi descoberta, mas é provavelmente multifatorial e complexa.
Você acha que a revisão é relevante? Ela abre novas portas na área da psiquiatria?
É um estudo importante, porque corrobora com a percepção de muitos psiquiatras que entendem que essa teoria das monoaminas, aí inclui não só serotonina, mas noradrenalina e dopamina, sempre foi insuficiente para explicar a depressão.
Não é um estudo inovador. Ele corrobora com uma coisa que a gente já sabia: não há uma correlação entre níveis de serotonina e estar ou não deprimido. Como é que a gente já sabia disso? Porque quando a gente prescreve o antidepressivo, não dosamos a serotonina antes, o crivo de indicar ou não é baseado no diagnóstico clínico.
A gente também sabe que quando você trata pacientes com depressão, 30% não respondem aos antidepressivos. Isso já era um elemento que fazia com que a gente suspeitasse fortemente que esse mecanismo não explicava todos os casos.
Ainda que se busque nas pesquisas científicas, o marcador biológico para depressão, esse marcador ainda não existe. Isso não quer dizer que a gente não vá descobrir que a doença mental não tem uma base biológica, quer dizer que a doença mental tem uma origem provavelmente multifatorial e complexa. Enxergar a falta de serotonina como causa da depressão é um reducionismo.
Em que contexto e por que a serotonina e essa teoria acabaram no centro das atenções quando se fala em depressão?
As primeiras medicações que, pela observação, percebeu-se que tinha um efeito antidepressivo eram medicações que se ligavam a receptores da serotonina, noradrenalina e dopamina. E muitos pacientes melhoravam (com essas primeiras medicações), então, não adianta também demonizar a teoria do desbalanço bioquímico simplesmente porque a serotonina não estabeleceu correlação de causa e efeito.
Uma das sugestões do estudo é que profissionais não mais informem a pacientes que a depressão é uma condição relacionada a baixas concentrações de serotonina. O que você acha disso?
Essa informação nunca deveria ter sido dada porque é uma simplificação equivocada. Eu nunca informei um paciente meu que a depressão dele era causada por níveis baixos de serotonina. Ainda que eu saiba que muita gente faz isso. A informação correta é que a gente não sabe qual é a origem da depressão e temos algumas teorias, dentre elas essa, mas que provavelmente não explicam tudo nem todos os casos.
Os pesquisadores pedem mais estudos sobre medicamentos antidepressivos. O que isso quer dizer? A gente deve parar de prescrever antidepressivos?
De forma nenhuma. A gente precisa conhecer melhor o mecanismo de ação dos antidepressivos, isso depende de investimento em pesquisa. Precisamos de estudos de longo prazo para avaliar principalmente a eficácia de antidepressivos, porque, na medicina, normalmente temos estudos só de curto prazo.
A introdução dos antidepressivos e dos psicofármacos no tratamento das doenças mentais é um divisor de águas na saúde mental da população. Só conseguimos desinstitucionalizar casos graves e fechar os os manicômios na reforma psiquiátrica por conta dos antidepressivos e da eletroconvulsoterapia. Se começarmos a demonizar os antidepressivos, vamos ter uma piora da atenção à saúde mental, e o Brasil tem um crescimento, nas últimas duas décadas, absurdo do número de suicídios.
O estudo joga um pouco de luz sobre a influência de fatores externos na depressão. Você poderia falar um pouco sobre isso?
A gente sabe que a depressão é multifatorial e eventos adversos, externos e traumáticos, principalmente na primeira e segunda infância e adolescência, conferem vulnerabilidade para transtornos mentais. Abuso sexual, abuso físico, violência doméstica, bullying escolar são alguns exemplos.
Durante a pandemia vimos uma expansão das vendas de antidepressivos e estabilizadores do humor, você acha que isso está relacionado a esses fatores externos? A pandemia gerou mais estresse?
Sou um crítico construtivo dessa visão de que a pandemia piorou os transtornos mentais, porque os estudos que mostraram piora são estudos que usaram escalas que medem sintomas. E medir sintoma é diferente de medir transtorno mental. Todo mundo se estressou na pandemia, independentemente de lockdown e isolamento.
A saúde mental das pessoas piorou porque elas ficaram mais estressadas, preocupadas, uma vez tinha gente morrendo a torto e a direito. Acho que houve uma piora de transtorno mental de populações específicas: mulheres, população não branca e de baixa renda.
Acho que houve um aumento de venda de remédios porque a gente tem privilegiado medicar sintomas ao invés de diagnósticos. A gente vive num momento da sociedade que é bastante ou razoavelmente hedonista, baseado no ‘eu preciso ser feliz’, ‘eu preciso buscar prazer a qualquer custo’. Medicalizar o sofrimento é um erro, porque os antidepressivos têm um tamanho de efeito baixo para sintomas depressivos que não configurem um transtorno depressivo. Hoje, os pacientes toleram muito pouco sofrer.
Vemos não só a venda aumentando, mas os diagnósticos também. Vivemos uma sociedade mais “depressiva” ou estamos tendo mais acesso à saúde mental?
Uma coisa não exclui a outra. Principalmente nos grandes centros urbanos, por fatores externos, como estilo de vida, sobrecarga de trabalho, sobrecarga de estresse, baixa tolerância ao sofrimento, temos uma sociedade mais propensa a se sentir deprimida. E temos também temos – ainda que seja alto o estigma da doença mental – é um estigma muito menor do que há 10, 30 anos, então as pessoas hoje procuram mais ajuda e, obviamente, você faz mais diagnósticos.