Liberdade de expressão
Por
Leonardo Desideri – Gazeta do Povo
Brasília
Congresso deverá votar nos próximos dias a derrubada do veto presidencial a um dispositivo legal sobre fake news.| Foto: Wesley Amaral/Câmara dos Deputados
O Congresso pode estar prestes a criar o crime de fake news eleitoral, que seria punido com prisão de até cinco anos. Esse será o principal foco de uma sessão conjunta da Câmara e do Senado que estava marcada para julho, mas, por um acordo entre lideranças partidárias, foi adiada e deverá ocorrer nos próximos dias.
Parlamentares decidirão se derrubam ou não alguns vetos que o presidente Jair Bolsonaro (PL) fez a uma norma do Legislativo que revogou a Lei de Segurança Nacional e definiu crimes contra o Estado Democrático de Direito. A decisão mais controversa se refere a um dispositivo que cria o crime da “comunicação enganosa em massa”, penalizando com até cinco anos de reclusão quem “promover ou financiar” pela internet “campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.
No ano passado, Bolsonaro sancionou a norma, mas vetou esse dispositivo. Para o presidente, “a proposição legislativa contraria o interesse público” por não definir “qual conduta seria objeto da criminalização” e por deixar em aberto “se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime”. Essa situação, segundo ele, poderia provocar “enorme insegurança jurídica”.
“A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar”, acrescentou Bolsonaro ao vetar a proposta.
Na mesma sessão, outra votação controversa será a do veto presidencial à repressão de manifestações políticas. Bolsonaro não quis sancionar um dispositivo que prevê prisão de até quatro anos a quem “impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação”. O motivo, segundo ele, é a “dificuldade de caracterizar, a priori e no momento da ação operacional, o que viria a ser manifestação pacífica, o que geraria grave insegurança jurídica para os agentes públicos das forças de segurança responsáveis pela manutenção da ordem”.
O Congresso estava em recesso até o dia 31 de julho. Com a volta aos trabalhos e a iminência do período eleitoral, é provável que a derrubada do veto presidencial seja votada nos próximos dias, mas ainda não há uma data definida para a sessão.
Se o Congresso derrubar o veto, os dispositivos mencionados passarão a fazer parte da Lei do Estado Democrático de Direito. O professor Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), avalia que um recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF) neste caso seria em vão. “A única forma de lutar contra esse dispositivo seria uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, só que todos nós sabemos que a maioria dos ministros do Supremo comunga com essa mesma visão restritiva da liberdade de expressão”, diz.
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Derrubada do veto sobre fake news pode dar grande poder a juízes de pequenas zonas eleitorais
O advogado Adriano Soares da Costa, especialista em Direito Eleitoral, considera que a derrubada do veto ao dispositivo sobre “comunicação enganosa em massa” pode criar uma aberração: dar grande poder para que até mesmo juízes de pequenas zonas eleitorais apliquem punições a quem propagar certos tipos de informação.
“Se o veto cair, o Congresso Nacional vai estar outorgando o poder ao juiz de cada zona eleitoral. Quem é que vai aplicar primeiro esse artigo? É o juiz eleitoral de cada zona eleitoral quem exercita o poder de polícia da propaganda [eleitoral]. Isso é uma função que não é judicial; ela é, primeiro, administrativa. O juiz eleitoral numa zona do interior, de qualquer cidade, tem o poder de polícia em uma atividade administrativa sua. Você imagina o seguinte: para qualquer denúncia, esse juiz vai ter condição de exercer o poder de polícia. Ele vai, em nome desse artigo, numa atuação com o Ministério Público ou de ofício, poder tomar medidas de natureza judicial”, explica.
Para ele, a derrubada do veto reforçará no Brasil “um contexto de criminalização da liberdade de expressão”. “Nós temos visto, no país, uma crescente relativização e mitigação da liberdade de expressão como garantia de direito fundamental próprio da soberania popular”, observa. “Qualquer pessoa, qualquer cidadão, poderá se sujeitar a ter que responder a um processo. Isso gera no mercado das ideias um antecipado constrangimento, um estado de vigilância constante. É aquela história da ‘era do capitalismo de vigilância’: o que se quer, na verdade, é tolher o cidadão pelo medo.”
Alessandro Chiarottino ressalta que a antiga Lei de Segurança Nacional, que foi revogada, tratava de atos concretos, mas que a redação proposta na nova lei não vai na mesma linha. “Ela trata de atos que não são ações, mas simples manifestações de opinião. Você está proibindo um ato que começa e acaba com uma manifestação de opinião. Aí alguém pode dizer: ‘mas essa manifestação de opinião pode ter consequências fáticas na realidade’. Acontece que todo o Estado Democrático de Direito – isso em qualquer país do mundo, desde seu surgimento – está ligado à liberdade de opinião e expressão. Existe um limite para essa liberdade? Sim, mas esse limite tem que ser colocado com muita cautela, sob pena de anular o próprio sentido do Estado Democrático do Direito”, comenta.
Segundo Chiarottino, a subjetividade do dispositivo sobre fake news pode criar uma espécie de “Ministério da Verdade” no Brasil. “Como é que um órgão governamental vai decidir se a minha interpretação da realidade é uma interpretação verdadeira ou uma interpretação falsa? Nenhum órgão estatal pode ser constituído ‘Ministério da Verdade’ e dizer se uma determinada interpretação é correta ou não. Isso seria de um paternalismo absurdo. Seria um estado autoritário, de censura, paternalista, que é totalmente contrário ao que nós entendemos por Estado Democrático de Direito.”
Para o especialista, o que o dispositivo sugere é que “o Estado é quem tem que decidir o que o cidadão pode ouvir e dizer”. “É como se ele dissesse ao cidadão: ‘Olha, isso aqui você não está preparado para julgar, isso pode lhe causar um dano, então você não pode ouvir isso aqui, não. Você vai ouvir aquilo que foi filtrado pelas instituições certas e que foi aprovado’”, observa.
Para Soares da Costa, o tema das fake news é o novo modismo do Direito Eleitoral, e a obsessão por ele está provocando um dano à democracia. “Nós já tivemos o modismo da compra de votos, o modismo do ‘fichalimpismo’ e agora estamos no modismo das fake news. Em todos estes modismos, o que se fez foi diminuir o campo de atuação do eleitor, afastar o eleitor da política e criminalizar a política. Esse dispositivo é mais um numa série de tentativas da nossa tradição de criminalização da política e de redução do espaço democrático do eleitor.”
Caso o veto seja derrubado, segundo o especialista, “os membros do Congresso Nacional estarão se colocando a si próprios em risco, aos eleitores em risco, e diminuindo – o que é mais grave – o campo de soberania popular, que se exercita pela liberdade de pensamento e pela liberdade de expressão”.
“Os políticos que, eventualmente, por questões de momento – achando que com isso vão prejudicar o grupo A ou o grupo B –, derrubarem esse veto vão estar dando um tiro no próprio pé. Quando você coloca a sua liberdade nas mãos da subjetividade de um julgador, com um tipo aberto e indeterminado como este tipo penal, é como uma roleta-russa: você pode se salvar uma vez, mas na outra, não. Todos nós ficamos à mercê da autoridade e do poder do momento. É preciso deixar claro: o tema fake news hoje é apenas uma capa, uma bandeira, que esconde um propósito: limitar a liberdade de expressão e silenciar determinados grupos que pensam diferente de uma agenda politicamente correta”, afirma Soares da Costa.
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