Por
Filipe Figueiredo
Imagem de satélite da empresa Planet Labs mostra várias crateras na base aérea russa de Saky, na Crimeia| Foto: Divulgação
Na última terça-feira, dia nove, cerca de doze explosões foram relatadas na base aérea de Saky, na Crimeia. Localizada perto de Novofedorivka, na costa oeste da península, o local é uma das bases do componente aéreo da Frota do Mar Negro russa, que perdeu sua nau capitânia, o cruzador Moskva, em abril. As explosões causaram danos materiais, deixaram feridos e, principalmente, levantam um aspecto interessante do conflito. Se as explosões foram um mérito militar ucraniano, porque o país não reivindica o triunfo?
Em um primeiro momento, todas as informações vieram de fontes russas. O governador russo da Crimeia, Sergei Aksyonov, anunciou que cinco pessoas ficaram feridas, incluindo uma criança, e que estavam sendo devidamente atendidas. Foram postadas fotos e vídeos em redes sociais russas mostrando grandes colunas de fumaça na região da base. Posteriormente, o número subiu para treze feridos e uma morte. Segundo o Ministério da Defesa russo, ocorreu a “detonação de vários depósitos de munição”.
Inicialmente, as autoridades de defesa russas negaram qualquer tipo de ataque e danos militares, e que o incidente seria investigado para determinar a causa das “detonações”. No dia seguinte, entretanto, a empresa Planet Labs, sediada nos EUA, publicou imagens de satélite registradas nos dias nove e dez. As imagens contradizem a versão russa e mostram danos extensos, incluindo dez aviões de combate destruídos, dos modelos Su-24 e Su-30. As imagens também mostram que edifícios próximos, incluindo civis, ficaram danificados.
Postura da Ucrânia
Nos dias dez e onze, pipocaram diversas informações de “fontes anônimas” das forças armadas ucranianas. Uma, citada por um jornal dos EUA, falou em uma ação de forças especiais e guerrilheiros operando na Crimeia. Outra falou no uso de “armas de longo alcance”. Também especulou-se um ataque aéreo da Ucrânia. No dia onze, canais pró-Rússia em redes sociais afirmaram que o comandante da Frota do Mar Negro, almirante Igor Osipov, foi afastado e substituído pelo seu segundo em comando, o vice-almirante Viktor Sokolov.
Finalmente, também no dia onze, o Ministério da Defesa britânico, um país que apoia a Ucrânia no conflito, em seu relatório diário sobre a guerra, afirmou que a base provavelmente continua em operação e que o “incidente” deve fazer a Rússia “revisar sua percepção de ameaças”. Também é notável que a Força Aérea Ucraniana celebrou a “pequena vitória” em suas redes sociais e com seu porta-voz, Yuriy Ignat, mas sem reivindicar participação direta no episódio.
O leitor deve ter notado que pouco é confirmado, quanto mais reivindicado. No caso russo, o motivo da opacidade é óbvio. A narrativa de “incidente” é dúbia o suficiente para disfarçar tanto um eventual acidente movido por incompetência quanto o impacto negativo de um eventual ataque ucraniano contra uma base longe da linha de frente. Pior ainda, um “incidente” que certamente causou extenso dano material. Cada um dos aviões destruídos custa algumas dezenas de milhões de dólares.
O caso ucraniano, entretanto, é mais curioso. As mídias ligadas ao governo celebraram o episódio, insinuaram alguma participação e o próprio presidente Volodymyr Zelensky aproveitou o contexto para prometer que a Crimeia será retomada pela Ucrânia. Não houve, entretanto, nenhuma reivindicação pelo ataque. Em uma guerra em que seu país está lutando contra um vizinho mais poderoso, sofrendo reveses e com parte de seu território ocupado, não seria uma vitória de propaganda importante clamar por um ataque que deixou grande destruição em uma base tida como segura pelo inimigo?
Escalada do conflito
A resposta está no fato de que a Ucrânia precisa “comer pelas beiradas” e aproveitar suas eventuais vitórias quase em silêncio quando se trata do território russo. Situação parecida aconteceu meses atrás, quando um depósito de combustível explodiu na cidade russa de Belgorod. As imagens mostravam helicópteros de combate em meio à fumaça, mas a Ucrânia adotou a mesma política de opacidade. Pois admitir ataques contra território russo é dar uma possível justificativa para uma escalada russa.
Enquanto a Rússia empenha parte considerável de suas forças armadas no conflito, o país não declarou oficialmente guerra à Ucrânia, passo necessário para uma mobilização geral. Pela constituição russa, armas nucleares podem ser utilizadas apenas caso a “existência do país” seja ameaçada. A Ucrânia admitir que realizou ataques contra território russo poderia servir de eventual justificativa para alguma dessas duas ações, como o uso de armas nucleares táticas.
Existe outro componente nesses cálculos. Caso um ataque desses seja executado com armas fornecidas pelos EUA ou por países europeus, como o sistema de foguetes HIMARS, a Rússia pode acusar esses países de um envolvimento direto no conflito, correndo o risco de uma escalada retórica internacional. Algo que absolutamente ninguém deseja. A política de opacidade, então, embora sonegue os ucranianos de eventuais vitórias de propaganda, evitam problemas maiores, tanto no front militar quanto na política.
O caso específico da Crimeia, entretanto, é paradoxal. Tanto Rússia quanto Ucrânia consideram a península parte de seu território. É possível que, em outro momento do conflito, a Ucrânia realize operações militares contra alvos na Crimeia e fale abertamente sobre isso. E faria isso negando ter atacado a Rússia, mas afirmando que atacou alvos de uma potência ocupante dentro de seu próprio território. Caso isso ocorra, provavelmente o conflito entrará em um novo capítulo, mas apenas o futuro dirá.
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