Conflito na Ucrânia
Por
Luis Kawaguti
O presidente russo, Vladimir Putin, tem optado pela estratégia de conquistar território pouco a pouco, porém, de forma sistemática| Foto: EFE/EPA/MIKHAIL KLIMENTYEV/KREMLIN
Longe de ser um lunático prestes a usar o maior arsenal nuclear do mundo, o presidente russo Vladimir Putin parece estar sendo “cauteloso” em suas ações recentes na guerra da Ucrânia. Não por ética ou benevolência, mas sim porque Putin aparenta ter medo da capacidade militar da OTAN (aliança militar ocidental), de uma eventual reviravolta na opinião pública na Rússia e de que o país seja “engolido” pela economia chinesa.
O indício mais recente dessa cautela foi a resposta da Rússia às explosões na base aérea russa em Saky, na Crimeia. A instalação militar russa foi devastada por 12 detonações na terça-feira (9). Elas acabaram com armazéns de munições e combustíveis, teriam deixado ao menos 60 mortos e destruído oito aviões de combate – o maior número de caças russos liquidados de uma só vez desde o início da guerra.
A Ucrânia negou responsabilidade publicamente. Mas jornais americanos, entre eles o New York Times, publicaram entrevistas de oficiais ucranianos afirmando que as explosões teriam sido fruto de um ataque ucraniano.
Essa possibilidade foi reforçada por analistas ocidentais que avaliaram imagens de satélite da base, fornecidas pela empresa norte-americana Planet Labs. O think tank Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) disse à rede britânica BBC que dois edifícios usados para estocar munições podem ter sido atacados com o objetivo de causar o máximo de danos possível a aviões de caça guardados fora de hangares.
Após os vazamentos de informações ao New York Times, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky repreendeu seus oficiais e os aconselhou a não dar informações à imprensa sobre táticas de guerra.
Assim, não se sabe que tipo de armamentos poderiam ter sido usados no suposto ataque. A posição militar da Ucrânia mais próxima de Saky fica a 160 quilômetros de distância – e os mísseis e foguetes mais potentes que os ucranianos possuem, projetados para ataques contra alvos terrestres, têm alcance máximo de 80 quilômetros.
Um eventual bombardeio também poderia ter sido realizado por aviões de caça ou helicópteros ucranianos. Mas esse cenário é pouco provável, porque a base tinha fortes defesas antiaéreas.
Uma das hipóteses que vem ganhando força é a de que os ucranianos tenham adaptado mísseis nacionais antinavio Neptune para atacar alvos terrestres. Eles têm alcance de 280 quilômetros.
A segunda possibilidade é que equipes de comandos (forças de infantaria leve altamente treinadas) tenham invadido a base com ajuda de partisans (guerrilheiros da resistência ucraniana) e dinamitado os depósitos de munições.
Apesar dessas especulações, a reação da Rússia foi afirmar que as explosões não foram causadas por um ataque ucraniano, mas sim por um acidente. O ministro da defesa da Ucrânia, Oleksiy Reznikov, afirmou: “Eu acho que os soldados russos dessa base desrespeitaram a regra mais básica: não fumar em locais perigosos”.
Em outras palavras, Moscou minimizou o evento e também eventuais baixas – dizendo inicialmente que apenas uma pessoa morreu. A conduta foi a mesma adotada em abril, quando a Ucrânia atacou e afundou o navio capitânia da armada russa no Mar Negro, o cruzador Moscou.
A embarcação foi localizada por meio de informações de inteligência fornecidas pelas potências do Ocidente e destruída por uma provável combinação de ataques de drones e mísseis Neptune.
Mas o Kremlin atribuiu a perda do navio a um incêndio acidental em um depósito de munições. A resposta russa foi dada por meio de uma série de ataques de precisão a instalações militares ucranianas em Kyiv, como depósitos de combustíveis e munições e fábricas de blindados e mísseis.
Mas por que Moscou não responde à altura suas perdas militares?
Em linhas gerais, a doutrina militar russa autoriza a retaliação com o uso de armas nucleares em caso de ataque contra território nacional, segundo o think tank americano ISW (sigla em inglês do Instituto para o Estudo da Guerra). A Crimeia foi anexada à Rússia em 2014 em um referendo que não foi reconhecido pela comunidade internacional.
Mas uma retaliação russa de grandes proporções às explosões na base de Saky poderia provocar também uma reação de grande intensidade da OTAN. Ela poderia acontecer por meio do aumento da ajuda militar à Ucrânia, fornecimento de equipamentos de ataque mais potentes – como aviões de caça, por exemplo – ou mesmo poderia significar a entrada da OTAN no confronto por meio da implantação de uma zona de exclusão aérea.
Putin parece estar tentando evitar quaisquer desses cenários. Isso porque a escala atual da guerra tem permitido à Rússia conquistar território pouco a pouco, porém, de forma sistemática. Ou seja, Moscou trava uma guerra de atrito, na qual a superioridade de sua artilharia vem conquistando cidade após cidade no leste da Ucrânia.
Mas o Kremlin pode usar armas nucleares, certo?
Em tese, sim. Mas isso poderia provocar uma resposta nuclear da OTAN e uma consequente escalada sem limites do conflito.
Ou ainda: se Moscou detonasse uma bomba nuclear tática de pequenas proporções (com um décimo da potência da bomba de Hiroshima, por exemplo), o cenário mais provável seria uma retaliação não nuclear de grandes proporções por parte da OTAN. Segundo analistas ocidentais, a Rússia não tem condições de vencer a aliança ocidental em uma guerra convencional.
Além disso, uma escalada na intensidade da guerra da Ucrânia exigiria que o Kremlin mobilizasse mais tropas e equipamentos. Por enquanto, a necessidade de tropas adicionais, decorrente das baixas no campo de batalha, vem sendo suprida em grande parte pela empresa militar privada Wagner Group.
Mas se a Rússia precisasse aumentar significativamente seu poder ofensivo, necessitaria para isso declarar mobilização nacional. Mesmo com todo o aparato de repressão e controle das mídias, o recrutamento massivo de soldados russos poderia abalar os altos índices de popularidade de Putin.
Em outras palavras, a Ucrânia luta uma guerra absoluta de sobrevivência da nação. Ou seja, uma guerra na qual todos os esforços do Estado e do povo estão voltados para o conflito. Uma guerra sem limites.
Já a Rússia encara a ação na Ucrânia como um conflito que tem grande importância estratégica, mas que por ora não tem potencial para determinar o destino da Rússia. Entre outros motivos, é por isso que Putin chama a guerra de “operação militar especial”.
Os Estados Unidos e seus aliados europeus tampouco estão interessados em entrar em uma guerra absoluta e, assim como Putin, temem uma escalada do conflito. Talvez por isso, com medo de perder apoio, o governo de Zelensky não cantou vitória abertamente sobre o suposto ataque a Saky.
A China é a salvação ou uma ameaça à Rússia?
Outro temor que influi no raciocínio russo em relação à guerra na Ucrânia é o papel da China na esfera econômica do conflito.
Putin e o ditador chinês Xi Jinping firmaram em 4 de fevereiro, antes da guerra, uma “parceria sem limites” – que foi interpretada por analistas ocidentais como um pacto de momento contra a hostilidade dos Estados Unidos e seus aliados.
A curto prazo, Pequim se tornou um grande fornecedor de produtos e comprador de energia de Moscou – substituindo parceiros comerciais europeus que aderiram às sanções internacionais capitaneadas pelos Estados Unidos e destinadas a isolar a economia russa.
Para se ter ideia, as vendas de petróleo e gás natural da Rússia para a China chegaram a 8,4 milhões de toneladas em maio – 55% a mais do que no mesmo período do ano anterior, segundo a Administração Geral de Alfândegas da China. Assim, a Rússia desbancou a Arábia Saudita (7,8 milhões de toneladas) como o maior fornecedor de hidrocarbonetos para a China.
Mas a salvação econômica tem um preço. Na medida em que o tempo passa e as sanções continuam, a Rússia terá que aceitar condições desfavoráveis em negociações comerciais com a China, segundo artigo do analista Alexander Gabuev, do think tank Carnegie Endowment for International Peace, publicado na revista Foreign Affairs.
De acordo com o pesquisador, no campo diplomático, a China pode obrigar Moscou a abrir mão de parcerias de defesa com a Índia e com o Vietnã, além de apoiar Pequim em suas demandas sobre Taiwan e a região marítima ao sul da China. O Kremlin também terá que fazer negociações e construir reservas financeiras baseadas na moeda chinesa.
No campo dos armamentos, a China poderá se beneficiar da compra de tecnologia russa. Na exportação de maquinário pesado, os chineses devem tentar substituir os alemães como grandes fornecedores para a Rússia.
Nesse processo, Xi Jinping terá que se preocupar em evitar as sanções americanas por conta da ajuda a Moscou. Mas não pode forçar seu novo parceiro a ponto de fragilizar demais o governo de Putin – pois a queda do russo e sua substituição por um líder menos hostil ao Ocidente podem prejudicar os interesses chineses.
Isto é, Moscou deve receber o apoio econômico que precisa para continuar lutando na Ucrânia. Mas, se não souber lidar com os chineses, a longo prazo a Rússia pode perder muito de sua autonomia estratégica – tornando-se uma espécie de “parceiro júnior” da China, cuja economia pode ultrapassar a americana por volta de 2030. Essa dependência é outro medo que tem estimulado o exercício da cautela por parte de Putin.
Ameaça de catástrofe nuclear
As Forças Armadas da Rússia têm capacidade para atingir, a distância, praticamente qualquer alvo na Ucrânia. Até agora, a despeito de toda a destruição causada, elas vêm poupando centros de grande concentração populacional, como a capital Kyiv.
Mas a atitude cautelosa na estratégia de guerra como um todo não está acontecendo em relação à usina nuclear de Enerhodar, em Zaporizhzia, no sul da Ucrânia.
A maior usina nuclear da Europa foi tomada pelos russos no dia 4 de março. Na ocasião, tropas russas bombardearam e provocaram um incêndio em uma parte da planta – que não resultou em vazamento de radiação. Na época, o Kremlin tentou culpar a Ucrânia pelo incêndio.
Nos últimos dias, a usina voltou a ser bombardeada, nos dias 6 e 11 de agosto. Segundo os ucranianos, a Rússia posicionou peças de artilharia entre os reatores nucleares. O objetivo é atirar contra posições ucranianas nas proximidades, sem correr o risco de receber fogo em retaliação.
Os ucranianos têm tentado então atingir os russos fora da usina, no momento em que soldados entram e saem do complexo em trocas de turnos.
Já a Rússia acusa tropas ucranianas de serem as responsáveis pelos ataques à usina. Kyiv, por sua vez, diz que jamais bombardearia as instalações nucleares, pois um vazamento de radiação colocaria em risco a sua população e contaminaria o território do país por décadas.
Não é possível verificar de forma independente quem foram os responsáveis pelos recentes bombardeios. Mas essa é a primeira vez que uma usina nuclear é palco de uma guerra de alta intensidade.
Um disparo de artilharia que atinja uma estrutura crítica da usina pode resultar em dois cenários. No mais grave, a destruição dos sistemas de resfriamento do núcleo de um reator nuclear poderia levar ao seu derretimento e explosão. Nesse caso, uma nuvem de radiação equiparável às dos desastres de Chernobyl, em 1986, ou Fukushima, em 2011, poderia atingir não só a Ucrânia, mas a Rússia ou países da Europa, dependendo das condições do vento.
O outro cenário possível seria um vazamento de radiação mais limitado, mas que também poderia afetar a Ucrânia e os países vizinhos. Em ambos os casos, o número de vítimas seria contado aos milhares, grandes áreas ficariam inabitáveis por décadas e o dano ambiental seria de magnitude catastrófica.
A ONU e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) vêm pedindo que os combates na região cessem imediatamente e que a Rússia permita o acesso de técnicos internacionais à planta e crie uma zona desmilitarizada ao seu redor. A Ucrânia tem apoiado os pedidos internacionais para que toda a área seja excluída da zona de conflito, mas todos esses apelos por ora não têm sido atendidos.
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