Editorial
Por
Gazeta do Povo


O ex-presidente Lula (PT) chamou a Lei da Ficha Limpa de “bobagem”, em entrevista a emissora de rádio mineira.| Foto: Sérgio Dutti/PSB

O ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado Lula tem todos os motivos para não gostar da Lei da Ficha Limpa, que ele próprio sancionou em 2010. Afinal, foi ela que o impediu de se candidatar à Presidência da República em 2018, já que ele tinha condenação por colegiado – no caso, o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região – no caso do tríplex do Guarujá. E, se o Supremo Tribunal Federal não tivesse tirado da cartola, em uma das decisões mais absurdas de sua história recente, uma anulação de todos os processos contra Lula, combinada com uma igualmente absurda declaração de suspeição de Sergio Moro, o petista ainda seria um ficha-suja e não poderia tentar retornar ao Planalto, mesmo que já não estivesse preso como estava em 2018.

Aliás, é oportuno mencionar que mesmo em 2018 houve quem, no TSE, defendesse a candidatura de um ficha-suja, que o PT insistiu em registrar com estardalhaço, mostrando seu desprezo pela lei: o ministro Edson Fachin, felizmente, foi voto vencido no julgamento que negou o registro da candidatura do petista e forçou sua substituição por Fernando Haddad. Dois anos depois daquele episódio, Fachin mostrou que seguia convicto de seu erro, quando afirmou, na abertura de um Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, que a candidatura de Lula em 2018 “teria feito bem à democracia brasileira” e fortalecido o “império da lei” – que lei teria sido “fortalecida” com a participação de um ficha-suja no pleito é difícil saber. Infelizmente, Fachin, que até então vinha se portando com elogiável rigor nos casos envolvendo a Lava Jato e o próprio Lula no Supremo, deu uma guinada inexplicável quando, em março de 2021, decidiu anular todos os processos contra o petista baseado em um entendimento incorreto, que já tinha sido analisado e derrotado no próprio STF. Sua decisão teratológica, confirmada depois em plenário com o apoio de mais sete ministros, limpou a ficha de Lula. A suspeição de Moro, por sua vez, completou o trabalho ao invalidar praticamente todo o robustíssimo conjunto probatório que poderia levar o petista a novas condenações caso os processos fossem reiniciados; sem que as provas tenham valor jurídico, as denúncias têm sido todas rejeitadas, isso quando não acaba havendo prescrição, como no próprio caso do tríplex.

A Lei da Ficha Limpa deixou claro que o brasileiro quer ver afastados da vida política, por um tempo razoável, aqueles que usaram cargos públicos para se envolver em atos de corrupção, seja em benefício próprio, seja para construir projetos de perpetuação no poder

Pois Lula, no último dia 17, em entrevista a uma emissora de rádio de Belo Horizonte, chamou a Lei da Ficha Limpa de “uma bobagem (…) tal como ela foi feita”, e afirmou que ela precisava ser “rediscutida”. E que ninguém seja ingênuo: por essa “rediscussão” não há como entender uma melhoria ou um aprimoramento da legislação, mas a sua piora ou, quem sabe, sua abolição pura e simples. Afinal, Lula parece não ver problema com a presença de corruptos do passado ou do presente na vida política. “Essas pessoas cometeram erros, outras cometeram crimes, outras pessoas foram julgadas, outras condenadas, mas essas pessoas estão livres fazendo política. Essas pessoas são presidentes de partidos, essas pessoas têm mandatos. Então você não pode criminalizar porque a pessoa cometeu apenas um crime, mas ele já foi julgado, já foi absolvido ou já cumpriu pena e vida que segue”.

De fato, se um político condenado por corrupção já cumpriu toda a pena que lhe foi imposta, e já viu transcorrido o período de inelegibilidade previsto em lei, é seu direito pretender voltar à vida política. O fato de o eleitor querer dar uma segunda (ou terceira, ou quarta, ou quinta…) chance a tais pessoas, bem como a outros políticos que ainda são réus por casos de ladroagem, mostra que ainda falta a muitos brasileiros maior consciência do quanto a corrupção lhes prejudica, mas não há ilegalidade nisso. A fala de Lula, no entanto, vai além: ele pretende normalizar – se não do ponto de vista legal, ao menos do ponto de vista moral – a relevância política de quem foi pego lesando o povo brasileiro por meio da corrupção.


A Lei da Ficha Limpa foi uma enorme conquista do povo brasileiro, fruto de uma mobilização popular poucas vezes vista na história do país em termos de coleta de assinaturas. Ela deixou claro que o brasileiro quer ver afastados da vida política, por um tempo razoável, aqueles que se aproveitaram de seus cargos públicos para se envolver em atos de corrupção, seja em benefício próprio, seja para fraudar a democracia por meio da construção de projetos de perpetuação no poder, como no mensalão e no petrolão. Tentativas de amenizar a lei não têm faltado: em dezembro de 2020, o ministro Nunes Marques, do STF, reduziu liminarmente os prazos de inelegibilidade, atendendo a pedido do PDT – a liminar caiu no plenário, mas por questões processuais, sem que o mérito da ação fosse analisado. O Congresso Nacional teve mais sucesso ao aprovar o PLP 9/2021, que retirou a inelegibilidade de gestores condenados apenas a pagar multas, mas outra tentativa de afrouxar a lei, desta vez por meio de um novo Código Eleitoral, está parada no Senado depois de passar pela Câmara.

Com todo o edifício do combate à corrupção sendo demolido aos poucos, em reação ao enorme sucesso da Operação Lava Jato, Lula se mostra mais que disposto a contribuir com sua marretada. O arcabouço legal que permitiu a investigadores e juízes colocar ladrões na cadeia e impede que eles voltem logo à vida pública está sob forte ataque daqueles que se julgavam intocáveis, mas descobriram-se vulneráveis. A Lei da Ficha Limpa é parte deste arcabouço, e não surpreende que ela esteja na mira do mais célebre político brasileiro a ter sofrido seus efeitos, sem falar do tempo passado na cadeia. Lula acha a lei atual uma “bobagem”; quem dera sua opinião pudesse ser classificada apenas como uma “bobagem”, pois ela é muito mais que isso: é um sinal de que tudo deve voltar a ser como antes caso o petismo reconquiste o Planalto.


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