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Paulo Uebel – Gazeta do Povo
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, ordenou que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão em endereços de oito empresários que trocavam mensagens num grupo de WhatsApp| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
“Tudo isso considerado, seria possível deduzir, caso já não a conhecêssemos, qual é a estrutura geral da sociedade oceânica. No topo da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande Irmão é infalível e todo-poderoso.”
George Orwell em “1984”
Com o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Polícia Federal (PF) investindo recursos para investigar conversas de empresários no WhatsApp, até parece que o Brasil virou um paraíso sem crimes, assassinatos e escândalos de corrupção. Não que a função do STF seja combater a criminalidade, mas estranha o uso da Polícia Federal em um caso que podemos chamar, no mínimo, de duvidoso. Certamente, devem ter elementos muito contundentes que justifiquem uma atitude dessa magnitude. A ameaça deve ser real e grave: milhões de reais investidos, milhares de armas adquiridas, depósitos com pilhas e pilhas de munições, centenas de veículos e caminhões mobilizados, grupos de pessoas sendo treinados nas diferentes regiões do país. Tudo que configure uma ameaça real de golpe.
Oficialmente, a função do STF é ser o guardião da Constituição, combatendo ameaças contra ela. Além disso, julga entes federados e alguns representantes políticos e administrativos que possuem foro privilegiado. Ultimamente, porém, parece que um membro do Supremo tem atuado para proteger a si mesmo, não à Carta Magna. Ou, pior, para agradar a si mesmo e demonstrar seu poder, já que o caso a seguir, provavelmente, nem sequer representa ameaça real e grave à Suprema Corte brasileira, muito menos à democracia brasileira.
Os brasileiros de bom senso foram surpreendidos quando, na terça-feira passada (23), o ministro do STF Alexandre de Moraes ordenou que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão em endereços de oito empresários que trocavam mensagens num grupo de WhatsApp, que incluíam críticas ao sistema de apuração de votos brasileiro e ao próprio STF. Além da busca e apreensão, o STF também ordenou o bloqueio de contas e suspensão de perfis nas redes sociais, quebra do sigilo bancário e telemático (de mensagens). Pela gravidade das medidas, as provas devem ser muito robustas, contundentes e sérias. No Brasil, todas as medidas, sejam elas coercitivas, indutivas, mandamentais ou sub-rogatórias (aquelas que dependem de terceiros) devem ser sempre proporcionais, razoáveis e não excessivas.
O mais grave entre as mensagens vazadas teria sido a preferência de um dos empresários por um golpe em vez da volta do PT (Partido dos Trabalhadores) “um milhão de vezes.” Ele também disse que “com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”. Um outro disse que o golpe tinha que “ter acontecido nos primeiros dias de governo”. Um terceiro comentou que “o STF será o responsável por uma guerra civil no Brasil”.
Por mais que essas declarações sejam infelizes e que a preferência por um golpe em comparação com a eleição de Lula da Silva não tenha qualquer amparo constitucional, a lei só pode punir ações, não a consciência, as bravatas ou as preferências pessoais, por pior que sejam, dos cidadãos. Em primeiro lugar, no geral, crenças e ideias devem ser livres quando não representam ameaça grave e real para nenhuma pessoa ou instituição, por mais absurdas que pareçam às autoridades ou a outros membros da sociedade civil.
“Os crimes contra o Estado Democrático de Direito pressupõem uma violência ou grave ameaça, contudo, não se tem notícia que os empresários (senhores de 60, 70 e 80 anos) praticaram essas condutas contra qualquer Poder da República (Art. 359-L e 359-M, CP)”, explicou a procuradora da República e professora de Direito Thaméa Danelon, em uma rede social.
Além disso, as mensagens privadas foram obtidas de maneira ilegal, e a violação da intimidade fere não apenas o direito individual de qualquer cidadão, como também viola texto expresso da Constituição Federal. Outras irregularidades, aparentemente, envolvem o processo e deverão ser explicadas.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) não foi ouvida previamente à operação, e o Ministério Público deveria ter feito um parecer antes de um juiz de 1.ª instância decidir fazer busca e apreensão. Os empresários são cidadãos comuns, não possuem foro privilegiado, portanto, não deveriam ser investigados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Outro fator que causa estranheza no caso: o ministro Alexandre de Moraes é “suposta vítima”, o que deveria torná-lo impedido de relatar o caso ou de requerer diligências. No Brasil, ainda vale a premissa de que ninguém, por mais poderoso que seja, possa fazer justiça com as próprias mãos. Se você está emocionalmente envolvido, mesmo sendo ministro da mais alta corte, você deixa de reunir a imparcialidade e a independência que caracterizam o importante exercício da tutela jurisdicional.
Por suas aparentes violações à Constituição e autoritarismo, a decisão do ministro Alexandre de Moraes tem sido comparada nas redes sociais às medidas que o “Grande Irmão”, do livro “1984”, de George Orwell, tomava. O Grande Irmão é a autoridade suprema no livro, e se manifesta por meio de “teletelas” espalhadas tanto em lugares públicos como no interior das casas das pessoas. Como se fossem televisões, mas capazes de gravar e monitorar a população, para que todos estivessem sempre vigilantes e em estado de autocensura permanente.
Considerando que no livro “1984” as coisas são bem piores, com a devida proporção, é triste perceber que, longe de ser ficção, hoje uma pessoa no Brasil não sabe se o STF ou a Polícia Federal terá ou não acesso às suas conversas privadas, mesmo que elas não representem violência concreta ou grave ameaça. Em vez de resguardar a Constituição, será que um ministro do Supremo pode se tornar o principal fomentador da insegurança jurídica no país? Será que um ministro do Supremo pode agir contra alguns dos pilares da democracia brasileira, como é a livre expressão, o livre pensar e a livre associação, sem que representem violência concreta ou ameaça real?
Transmitindo ao público o editorial do Jornal da Band, o apresentador Eduardo Oinegue disse que só há duas hipóteses sobre o caso. “Primeira: os empresários são vigaristas, conspiradores, financiadores de um golpe de Estado. E, por esse motivo, e cheio de informações nas mãos, o ministro Alexandre de Moraes mandou a polícia para casa deles. […] Se for isso, Alexandre de Moraes tem que vir a público o quanto antes para explicar qual é a base, quais são os fatos que sustentam essa decisão dele. Essa é uma alternativa. Porque se não for essa, a alternativa é muito pior: Alexandre de Moraes enlouqueceu. Passou a achar que tem um poder quase divino sobre a vida das pessoas, e é por esse motivo que a gente não pode tratar o caso como outro qualquer. Há um lado lunático nessa história que a gente tem o direito de saber qual é”, disse ele.
Seja qual for a razão, o Brasil precisa saber a verdade. Depois dessas medidas, todos os brasileiros passaram a ter menos liberdade e, por consequência, menos dignidade. Milhões de cidadãos já estão em autocensura permanente. Milhões de pessoas perderam a capacidade de acreditar em valores como privacidade, previsibilidade, legalidade, proporcionalidade, razoabilidade, não excessividade e devido processo legal.
Faltando menos de 35 dias para as eleições, certamente, o ministro Alexandre de Moraes não quis interferir na campanha eleitoral, mas sua decisão foi tão chocante e esdrúxula que pode acabar interferindo. É difícil dizer para qual lado será mais forte, mas teve impacto em praticamente todos os eleitores. A partir de agora, a percepção das pessoas é de que o Grande Irmão está vigiando tudo e a todos durante todo o tempo. Mesmo que sejam meros arroubos ou declarações infelizes, que não representam, direta ou indiretamente, violência concreta ou ameaça grave, você poderá ter sua vida devassada. Você não pode fugir. Não existe mais foro íntimo, todo foro passou a ser público. A qualquer momento, a polícia pode bater na sua porta. George Orwell era criativo, mas parece que o Brasil ainda consegue superar uma das mais famosas distopias da história. O que era uma simples ficção, tristemente, pode virar realidade.
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