Decisão contra os oito empresários
Por
Leonardo Desideri
Brasília
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, ordenou que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão em endereços de oito empresários que trocavam mensagens num grupo de WhatsApp| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Ao autorizar a operação policial de busca e apreensão contra oito empresários, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes fez mais do que criar uma aberração dentro do Poder Judiciário: ele passou por cima do Ministério Público Federal (MPF), relativizando a importância de um órgão essencial para a garantia do devido processo legal.
Além de ter aberto ele próprio a série de inquéritos relacionados às fake news e aos chamados “atos antidemocráticos”, em usurpação de funções que são do MPF, Moraes negou os diversos pedidos de arquivamento dos inquéritos feitos pela Procuradoria Geral da República (PGR) e não intimou o procurador-geral da República antes das medidas contra os empresários.
“É absolutamente inviável que medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais, que não constituem um fim em si mesmas, sejam decretadas sem prévio pedido e mesmo sem oitiva do Ministério Público Federal”, disse a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, em uma manifestação após a decisão. Nesta sexta-feira (9), Lindôra pediu que o STF encerre as investigações contra os oito empresários.
A prática de escantear o MPF tem se repetido nos últimos meses, o que preocupa muitos procuradores e promotores. Em comunicado recente, a Associação Nacional MP Pró-Sociedade afirmou que as medidas de Moraes são “capazes de abalar os alicerces mais profundos e importantes do regime democrático, do devido processo legal e da proteção das demais liberdades individuais”.
Para Marcelo Rocha Monteiro, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), o que vemos é o retorno à lógica da Inquisição. “Ele [Moraes] está ignorando o sistema acusatório. Está nos levando de volta ao sistema anterior ao acusatório, que era chamado de sistema da inquisição. O juiz inquisidor era o único sujeito do processo. Ele investigava, ele acusava, ele processava e ele julgava. A ideia do sistema acusatório é separar essas funções. Tudo isso existe para quê? A pessoa está correndo o risco de ir para a cadeia. O sistema acusatório foi criado para preservar a neutralidade do juiz”, comenta.
Monteiro recorda que “o Poder Judiciário é inerte” e não pode tomar nenhuma medida de investigação ou contra o réu por iniciativa própria. “Ele só pode tomar qualquer medida como bloqueio de contas, busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica ou até mesmo prisão atendendo a pedido. De qualquer um? Não. Quem são os atores do nosso sistema de Justiça na fase de investigação? São dois: polícia e Ministério Público”, explica. “O que a gente tem visto neste episódio e em vários outros é que o ministro Alexandre de Moraes tem passado por cima do Ministério Público.”
Para Monteiro, o que torna o caso ainda mais grave é que Moraes atendeu a um pedido de medidas cautelares feito pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-PE), que é coordenador da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República. “É um candidato adversário daquele apoiado pelos investigados. Este senador não tem legitimidade e não tem isenção, porque ele está pedindo a um juiz medidas contra adversários do candidato dele, sendo que ele não é polícia e não é Ministério Público. É uma ilegalidade gravíssima. Quando quem faz um pedido ao juiz não tem legitimidade para fazer o pedido, o juiz tem que decidir o seguinte: ‘Não tomo conhecimento deste pedido. Não estou analisando nem o mérito. Não conheço do pedido, porque a parte que formulou o pedido é ilegítima.’”
Ignorar pedidos de arquivamento da PGR, por si só, já é ilegal
Além de não intimar o MPF sobre as ações, de ferir o princípio da inércia do Judiciário e de ter aceitado o pedido feito por uma parte ilegítima, Moraes também tem ignorado os diversos pedidos de arquivamento dos inquéritos relacionados às fake news. Isso, por si só, segundo Monteiro, é uma grave ilegalidade, sem precedentes recentes no Poder Judiciário. Moraes está agindo como se o MPF não existisse.
“Esse inquérito continua em andamento porque o Alexandre de Moraes desrespeitou essa regra. O inquérito já é ilegal desde sempre. Para se ter uma ideia, este pedido de arquivamento foi feito pela Raquel Dodge [ex-PGR]”, recorda.
Quando o procurador-geral da República pede o arquivamento de um inquérito ao Judiciário, o pedido é tratado como uma mera formalidade: o Judiciário não tem outra coisa a fazer senão arquivar o inquérito. Essa dinâmica é prevista pelo artigo 28 do Código de Processo Penal, em uma redação que ainda está em vigor:
“Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”
Há uma nova redação para esse dispositivo – suspensa temporariamente por uma liminar do ministro do STF Luiz Fux – que torna ainda mais clara a legitimidade do Ministério Público para arquivar um inquérito. “Na nova redação, o arquivamento nem sequer passa pelo Poder Judiciário”, diz Monteiro.
Na redação antiga, que ainda está em vigor, o promotor precisa pedir o arquivamento formalmente ao juiz. Se o juiz discordar, ele deve remeter o inquérito para o procurador-geral. Mas, se o procurador-geral insistir no pedido de arquivamento, o juiz é obrigado a atender.
“Quando o pedido de arquivamento já vem do próprio procurador-geral, o juiz não vai nem perguntar, não vai mandar o inquérito de novo para o procurador-geral para saber se o procurador-geral concorda com o pedido de arquivamento, porque você estaria perguntando se ele concorda com ele próprio. Seria um caso de esquizofrenia. Então, em razão disso, o Supremo, ao longo dos últimos 80 anos, decidiu o seguinte, várias vezes, em um entendimento consolidado: quando o pedido de arquivamento já vem do próprio procurador-geral, o Poder Judiciário não tem outra coisa a fazer senão arquivar”, explica Monteiro.
Isso não é o que vem acontecendo, no entanto. Moraes tem ignorado pedidos reiterados de arquivamento da PGR sobre os inquéritos relacionados às fake news. No começo de agosto, por exemplo, ele negou um pedido da vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, para arquivar uma investigação contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) no Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, havia feito o mesmo pedido, mas também foi ignorado. O caso é referente ao suposto vazamento de dados sigilosos de um inquérito da Polícia Federal sobre um ataque hacker contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018.
Atropelando e passando por cima do MPF, Moraes tem feito o Brasil regredir, segundo Monteiro, ao tipo de processo penal da Idade Média, em que não havia preocupação com a neutralidade e a imparcialidade do juiz, e no qual o juiz assumia as funções de promotor. “Tem um velho ditado que a gente usa para falar do sistema da Inquisição: ‘Quem é julgado pelo seu acusador precisa de Deus para fazer sua defesa’. Se você vai ser julgado por quem está te acusando, então já está condenado, porque ele já estava te acusando antes de te julgar”, conclui.
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