Editorial
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Gazeta do Povo
Deltan Dallagnol teve vídeo de campanha censurado por críticas ao STF.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Diz a recente lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito que “não constitui crime (…) a manifestação crítica aos poderes constitucionais”. Mas, como no Brasil de hoje a letra da lei anda desvalorizada, o que realmente prevalece é a interpretação segundo a qual qualquer “manifestação crítica aos poderes constitucionais”, especialmente o Judiciário, é transformada em “ataque” ou “discurso de ódio” que justifica o acionamento do braço repressivo estatal com todo o seu vigor, ainda que isso resulte em censura pura e simples. A mais recente vítima desse tipo de confusão entre “crítica” e “ataque” é o ex-procurador e candidato a deputado federal Deltan Dallagnol, que foi obrigado a remover de suas mídias sociais um vídeo com críticas ao Supremo Tribunal Federal.
O vídeo, de apenas 47 segundos, nada mais faz que expor o desatino de algumas decisões recentes do STF. Afinal, é a mais pura verdade que pelo Supremo passaram “a anulação de sentenças, a soltura de corruptos, o fim da prisão em segunda instância e muito mais”. Também é inegável que foi a suprema corte a responsável pela “metamorfose de um político que passou de presidente condenado por corrupção para candidato a presidente”, já que Lula vinha tendo suas condenações por corrupção confirmadas em todas as instâncias até que Edson Fachin tirasse do nada uma incompetência da 13.ª Vara Federal de Curitiba, anulando todos os processos contra o ex-presidente, decisão posteriormente confirmada pelo plenário. E ressalte-se aqui que Dallagnol se ateve apenas aos casos ligados ao combate à corrupção; se resolvesse criticar também os inquéritos abusivos instaurados pela corte, teria material para muitos minutos a mais de vídeo.
O que é “prejudicial à democracia do país”, para usar as palavras da juíza Melissa Olivas, não é chamar o Supremo de “casa da mãe Joana”, mas impedir um candidato de usar sua liberdade de expressão para chamar o Supremo de “casa da mãe Joana”
Mas, aparentemente, o ministro Alexandre de Moraes não gostou de ver o Supremo ser chamado de “casa da mãe Joana” e “uma mãe para os corruptos”, pedindo providências ao Ministério Público Eleitoral, que por sua vez acionou o Tribunal Regional Eleitoral paranaense. A juíza Melissa de Azevedo Olivas, então, considerou que as afirmações constituíam “claramente um ataque à instituição suprema do Poder Judiciário brasileiro”, acrescentando que o vídeo poderia atingir um público numeroso, “o que é prejudicial à democracia do país e não se admite”. Tudo com base no artigo 22, X, da Resolução 23.610/19 do TSE, que proíbe “caluniar, difamar ou injuriar qualquer pessoa, bem como atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública” – uma redação que, levada ao extremo como fez a juíza Melissa Olivas, proibiria qualquer crítica ao poder público por parte de candidatos.
A suprema ironia está no fato de o mesmo Moraes que não gostou do vídeo de Dallagnol ter dito semanas atrás, ao tomar posse como presidente do TSE, que “a intervenção da Justiça Eleitoral deve ser mínima, em preponderância ao direito à liberdade de expressão dos candidatos, das candidatas e do eleitorado”. Pouco antes, dissera que “tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das diversas opiniões sobre os principais temas de interesse do eleitorado e sobre os seus próprios governantes. A democracia não resistirá e não existirá, e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada”.
Certíssimo, aqui, o presidente do TSE, que no entanto desmente suas palavras com seus atos. Afinal, o que é “prejudicial à democracia do país”, para usar as palavras da juíza Melissa Olivas, não é chamar o Supremo de “casa da mãe Joana”, mas impedir um candidato de usar sua liberdade de expressão para chamar o Supremo de “casa da mãe Joana” – uma crítica certamente ácida, com o uso de uma expressão popular nada lisonjeira e conhecida de todos, mas que a doutrina e a jurisprudência brasileira sobre liberdade de expressão jamais julgaram merecedora de censura como a que vem sendo imposta agora ao ex-procurador e candidato.
Tratar como “ataque” aquilo que não passa de crítica legítima a atos de determinada instituição, ainda que feita de forma incisiva ou com expressões como as usadas por Dallagnol, é uma distorção grotesca do verdadeiro sentido da liberdade de expressão. O vídeo nem de longe advoga por rupturas institucionais como o fechamento da corte, ou por desrespeito a decisões judiciais; nem mesmo se pode dizer que tais críticas deslegitimam ou desmoralizam o Supremo – no limite, é a corte que desmoraliza a si própria quando ignora a lei e os fatos para tomar decisões mais políticas que técnicas. E, ao fazê-lo, dita tendência para tribunais Brasil afora, a ponto de justificar que candidatos sofram censura, atropelando a Constituição e abalando “a liberdade do direito de voto”, que “depende preponderantemente da ampla liberdade de discussão, de maneira que deve ser garantida aos candidatos e candidatas a ampla liberdade de expressão e manifestação”, para retomarmos as palavras que Alexandre de Moraes proferiu, mas das quais parece ter se esquecido rapidamente.
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