Eleição

Por
Bruna Frascolla – Gazeta do Povo


ACM Neto (União Brasil) em debate da Tv Globo.| Foto: Reprodução/TV Globo

Quando o assunto é o Nordeste, a direita de hoje parece os comunistas d’antanho. Certa feita um professor de filosofia de meia idade me contou o desgosto que era apurar as urnas da Bahia em sua juventude: estava tudo muito bem na capital, com o MDB lá na frente, até começarem a chegar as urnas do interior. Tudo ARENA. Para o nordestino da capital, “o interior” soa mais ou menos como “o Nordeste”: lá é que pode pôr tudo a perder, por causa do povo ignorante.

Ao menos o nordestino litorâneo tinha na ponta da língua a razão da discrepância entre o voto do interior e o da capital: os coronéis. Só agora é que a esquerda local resolveu que ser um camponês bêbado do interior dá muita consciência social. E o que é pior: a direita urbana do Sudeste acreditou. É como se pé rapado do interior tivesse ideologia, e não votasse em quem o coronel manda. Abrir as redes sociais, hoje, deu uma tremenda vergonha alheia.

Vou deixar de lado os outros estados em que há coisas interessantes acontecendo – tais como a queda do clã Ferreira Gomes no Ceará, a briga de primos em Pernambuco e a candidatura bolsonarista impugnada em Sergipe – e focar no meu estado, que por acaso é o mais populoso do Nordeste.

Racha nos coronéis ocorrido no petismo

Como eu já expliquei em detalhe aqui, a Bahia é governista. Durante o regime militar, a Bahia votava na ARENA. É tão governista, mas tão governista, que não tem nenhum equivalente de Arraes; aqui, a disputa pelo poder estadual se dava entre o arenista ACM e o arenista Roberto Santos, reitor da UFBA, ambos médicos de formação.

ACM, casado com a filha de um coronel do cacau, acabou ganhando a disputa. Nasceu assim o carlismo. Na Nova República, o carlismo vicejou com base numa tríade: a aliança capilarizada com os coronéis interior adentro, uma nova escola de propaganda e as obras públicas. Todas as eleições estaduais da Bahia na Nova República foram decididas em primeiro turno, exceto a de 1994, quando o primeiro sucessor de ACM fez quase 50% no primeiro turno. Em 2002, ano da eleição de Lula, o candidato carlista ganhou no primeiro turno, derrotando Jaques Wagner. O esquerdismo era uma afetação urbana; os grotões eram carlistas.

No entanto, a concertação entre empreiteiras e marketing, a partir de 2002, foi imitada em plano nacional. Marketing baiano e empreiteiras baianas deram o tom do cenário nacional. Assim, em 2006, pela primeira vez, o PT ganhou a eleição para o governo na Bahia. E não só ganhou, como levou de primeiro turno. Isso só podia significar uma coisa: algo se alterou na rede de coronéis. De fato, nomes tradicionais do carlismo migraram para a base aliada do PT. O mais famoso deles é Otto Alencar (PSD), que já foi governador carlista da Bahia no ano de 2002, completando o mandato do também carlista César Borges. Desde então, a Bahia se dividia entre o interior petista e os centros urbanos (Salvador e Feira de Santana) carlistas.

Forças incertas em 2022
Se tudo corresse como previsto pelos institutos de pesquisa, Otto Alencar provavelmente teria se candidatado ao governo do estado. Ele era cotado para ser o sucessor de Rui Costa, mas se recusou e preferiu concorrer à reeleição no senado na chapa do PT. O vice-governador de Rui Costa, João Leão, ia concorrer ao Senado como aliado de ACM Neto, mas desistiu e pôs o filho Cacá no lugar. Ao meu ver, essa movimentação se deu em função da incerteza do cenário nacional. Se Lula fosse certo, Otto seria governador e João Leão (o cacique do PP local) continuaria na base do petismo. ACM Neto é o nome adequado para um cenário de incertezas. O PT colocou um ilustre desconhecido para concorrer – o tal do Jerônimo – e por isso o candidato não tem nada a perder.

De fato, pela primeira vez o petismo vai ao segundo turno numa eleição estadual da Bahia. O ilustre desconhecido ficou com quase 50%; depois, veio ACM Neto, pouco mais de 40%, e por fim, dentre os candidatos significativos, veio João Roma, com quase 10% dos votos. Otto teve 55% dos votos. Ele só não é governador porque não quer. João Roma é outro coronel ex-carlista, mas de geração mais nova. Ele rompeu com ACM Neto e aderiu a Bolsonaro. Assim, num cálculo rude, dá 50% para o PT (puxado por Otto), 40% para ACM e 10% para Bolsonaro. Está dividido e imprevisível. Continua certo, porém, que o coronelismo vai bem, obrigado. O deputado federal mais votado foi Otto Filho, filho de Otto Alencar. Foram eleitos com boa votação o filho de Angelo Coronel (um coronel aliado de Otto, também ex-carlista) e a mulher de João Roma.

Centros urbanos

Na Bahia, Salvador e Feira de Santana costumam votar contra a Bahia rural. Ainda assim, Lula venceu em ambos os municípios. A oposição dos núcleos urbanos ao interior rural se manteve somente no âmbito estadual: em ambos os municípios, ACM Neto ganharia no primeiro turno. Resta concluir que os centros urbanos votaram Lula e ACM, do mesmo jeito que em 2002. 2002 também era um ano de incertezas, e a Bahia soube colocar o carlismo como um colchão entre a velha ordem tucana (que não dava bola para o Nordeste) e o petismo em ascensão (com sua fome de poder mirando o Nordeste).

Fui votar numa seção que concentra a elite antiga da cidade. Os carrões dos eleitores traziam plotagens de políticos no fundo. Nenhuma de Lula, nenhuma de Bolsonaro. As plotagens traziam ACM, de João Leão e de Otto Alencar.

Isso só pode significar uma coisa: Bolsonaro não está fazendo política direito no Nordeste. O Nordeste é como o Centrão. Ninguém o acha bonito, mas todo político de grande porte tem que se virar com ele. Não adianta bancar o incorruptível, o limpinho, e perder as eleições depois. O que os coronéis sempre pedem é uma obra para chamar de sua perante o eleitorado. Com obras, as regiões ganham infraestrutura e empregos provisórios, e o coronel, sendo considerado o “puxador” dos investimentos, ganha votos. Não há ideologia nisso e o eleitor não está nem aí para o que dizem os jornais.

Poderia ser pior para Bolsonaro

O Nordeste não liga para a opinião pública. Na época da ditadura, isso era bom. Os comunistas podiam espernear à vontade na imprensa, que o Nordeste não estava nem aí. Na Nova República, a imprensa tucana esperneava contra Lula, e o Nordeste não estava nem aí. Certo ele, já que FHC deixou, talvez, a maioria da população do Nordeste sem energia elétrica, situação que viria a mudar só com o Luz para Todos de Lula. Agora, sob Bolsonaro, a imprensa vive dizendo que Bolsonaro é o demônio. É óbvio que o Nordeste não passou a ouvir a beautiful people de uma hora pra outra. O problema é arranjo político.

Poderia ser pior. A capital de São Paulo deu maioria lulista, e seu deputado federal mais votado foi Boulos. Quais as chances de reverter os votos do eleitor urbano afetado, que escolhe sub-intelectual do PSOL? Por outro lado, um acordo com coronéis tem o potencial de mudar os rumos da eleição silenciosamente – do mesmo jeito que foi silenciosa a súbita mudança na Bahia em 2006.

ACM Neto terá de procurar ex-aliados para garantir a vitória contra o ilustre desconhecido do PT – seja junto a Roma, seja junto aos atuais aliados do PT local. Otto Alencar está com a faca e o queijo na mão. Pode derrubar o PT no plano estadual e, por que não, no federal. Nesse cenário, estaria encerrado o racha entre os coronéis baianos iniciado no petismo.


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