Eleição

Por
Bruna Komarchesqui – Gazeta do Povo


O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes| Foto: STF

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes, determinou no domingo (2) que o portal de notícias O Antagonista retirasse do ar uma reportagem intitulada “Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula. ‘É melhor, mesmo sendo pilantra’”, publicada na véspera da eleição. A decisão liminar também estabeleceu que a emissora Jovem Pan, os perfis nas redes sociais do presidente Jair Bolsonaro, de dois de seus filhos (senador Flávio Bolsonaro e deputado federal Eduardo Bolsonaro) e de apoiadores, como as deputadas federais Bia Kicis e Carla Zambelli, removessem conteúdos relacionados, sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo consideram que a decisão de Moraes é grave, configurando “flagrante violação da Constituição Federal”.

A reportagem censurada trazia trechos transcritos de uma conversa gravada pela Polícia Federal, em que o narcotraficante Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, chefe da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), declara sua preferência por Lula como presidente. “Se colocar um do lado do outro, o Lula é melhor que ele [Bolsonaro] para nós”, diz Marcola em uma das escutas reproduzida pelo O Antagonista. “Bolsonaro é parceiro da política, da milícia. Cara é sem futuro. O Lula também é sem futuro, só que entre os dois, não dá nem para comparar um com o outro”, completa o preso.

Na liminar assinada às 8h15 do domingo da eleição, Alexandre de Moraes classifica como “evidente e gravíssima desinformação” a reportagem. “Ocorre que, a partir da leitura da reportagem, não se constata qualquer declaração de voto de Marcola no candidato Luiz Inácio Lula da Silva”, afirma o ministro. “Tal contexto evidencia, com clareza, a divulgação de fato sabidamente inverídico e descontextualizado, que não pode ser tolerada por esta CORTE, notadamente por se tratar de notícia falsa divulgada na véspera da eleição”, completa a decisão.

“Há uma flagrante violação da Constituição Federal nessa decisão dele, que trata, em seu artigo 220, sobre essa questão. Inclusive essa é uma cláusula pétrea, que não pode ser objeto nem de emenda”, afirma o advogado civilista e previdenciário Afonso Oliveira, membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

De acordo com o texto constitucional: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social (…) É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

“Contra o texto da lei da Constituição não tem argumento. O argumento dele é subjetivo, é superficial, na sua decisão que fundamenta a censura, a retirada do ar da reportagem sob penas de multas pesadas”, defende. “Segundo a Constituição, a liberdade de expressão não pode sofrer ‘qualquer restrição’. Se a reportagem é caluniosa, difamadora, mentirosa, que se use o Código Civil e Penal. Calúnia, difamação, injúria é crime. Então, que se recorra ao Judiciário para a justa reparação e, se comprovada a injúria, o Judiciário poderia, como sanção, determinar a exclusão de uma publicação. Mas uma canetada de um juiz do Supremo constitui, para mim, uma grave violação do Direito Constitucional”, reforça Oliveira.

Para o advogado, a argumentação de Moraes sobre o fato ser “sabidamente inverídico” é frágil. “De onde ele concluiu isso, se a reportagem reproduz a transcrição de uma escuta da PF autorizada judicialmente ao chefe da maior organização criminosa do país? O ministro é investigador, detetive e procurador, mas isso não é coisa inédita”, afirma, em referência a uma decisão de Alexandre de Moraes de 2019. Na ocasião, o ministro do Supremo determinou que a revista Crusoé e o site O Antagonista removessem uma reportagem que abordava a citação do então presidente da Corte, Dias Toffoli, na delação premiada do empreiteiro Marcelo Odebrecht à Operação Lava Jato.

Decisão é preocupante 

Na liminar, Moraes acrescenta que “a ausência de veracidade do conteúdo a respeito de suposto voto é passível de se constatar” pela situação jurídica de Marcola, uma vez que condenados pela Justiça ficam com direitos políticos suspensos, portanto, “impedido de votar”.

Para o advogado Rodrigo Duarte Garcia, especialista em direito público e sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, o ministro foi habilidoso ao apelar a uma controvérsia semântica para determinar que a reportagem trazia fato “sabidamente inverídico e descontextualizado”. “O Marcola, por estar preso, não pode votar. Mas em nenhum momento ele declarou seu voto. Essa me parece uma questão mais de português que jurídica. Declarar voto e declarar apoio não são sinônimos? E se tivessem escrito na manchete ‘declara apoio’? Uma coisa é sinônima da outra”, argumenta.

Garcia defende que o problema começa na subjetividade da legislação eleitoral para definir o que é um fato inverídico e descontextualizado. “Isso é altamente problemático, porque pode ser qualquer coisa. Ou seja, vão se construindo diversos precedentes nesse sentido, que irão tornar a questão completamente casuística no futuro, para que decisões contrárias à liberdade de expressão sejam tomadas”, lamenta.

O advogado completa que, “quando se começa a discutir se uma informação é relevante, quem controla se é relevante ou não, já se extrapolou qualquer possibilidade jurídica”. “Acho complicado e preocupante. Um órgão de imprensa pode divulgar determinado fato. Até mesmo os órgãos que estão noticiando a decisão do TSE sobre o fato, é preciso verificar se o Tribunal não entende que isso esteja violando, o que pode gerar uma bola de neve em torno da liberdade de expressão e de imprensa”, diz.

Para Jorge Alberto Araujo, que é juiz do Trabalho no Rio Grande do Sul, decisões contrárias à liberdade de expressão são preocupantes, uma vez que o que está em jogo é um direito fundamental a ser preservado. “A liberdade é um bem que temos que privilegiar, principalmente quando vai contra o que acreditamos. Coisas que no passado eram tidas como fake news, como o heliocentrismo, por exemplo, depois se mostraram verdades. O próprio Galileu foi proibido de falar sobre isso na época. Geralmente, ideias novas, revolucionárias, surgem como minoria. Esse ponto me deixa preocupado. Para classificar algo como fake news precisa ser muito bem embasado, não basta dizer ‘parece que é mentira’”, defende.

Araújo acrescenta que a preocupação é ainda maior quando a decisão vem de uma Corte Suprema. “O Supremo Tribunal Federal é a baliza. Nós, juízes de primeiro grau, de instâncias inferiores, temos que levar o que se decide lá como parâmetro para nossos julgamentos. Então, acaba preocupando esse tipo de decisão”, afirma.

Segunda liminar 
Ainda no domingo, Moraes assinou uma segunda liminar às 17h51, alegando o descumprimento da primeira e determinando a suspensão de conteúdos por parte das plataformas Twitter e GTTR; a aplicação de multa de R$ 15 mil a “‘O Antagonista’ (Mare Clausum Publicacoes Ltda), Cláudio Dantas, Flávio Bolsonaro, Kim Paim, Bernardo Kuster, Leandro Ruschell e Barbara Destefani (@taokei1)”, e a abstenção, por parte dos citados, “de promover novas manifestações sobre os fatos tratados na presente Representação em desfavor do candidato Luis (sic) Inácio Lula da Silva, em qualquer meio de comunicação, incluindo nas redes sociais”, sob pena de multa individual e diária de R$ 30 mil.

“Não se pode permitir a reprodução indiscriminada de reportagens com divulgação de fatos dados como verdadeiros, quando não houve qualquer busca pela verdade (…) A conduta dos Representados demonstra, em verdade, o desprezo ao Estado Democrático de Direito, em momento cujos excessos devem ser coibidos, como forma de proteger as instituições e a vontade popular”, alegou Moares na decisão.


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