Editorial
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Gazeta do Povo
Lula participa de encontro com evangélicos em São Paulo.| Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
O candidato que disse não ter ido ao Círio de Nazaré, em Belém (PA), e às comemorações de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida (SP), porque não queria “misturar política com religião” acabou de renegar sua postura. Em um evento com mais de uma centena de líderes evangélicos, com direito a orações, bênçãos e imposição de mãos sobre um Lula de joelhos, o petista lançou uma “Carta Pública ao Povo Evangélico” em que faz uma série de afirmações a respeito de temas que interessam ao público cristão, especialmente os de cunho moral. No entanto, uma leitura atenta do texto, comparada com tudo o que Lula e o PT já disseram ou fizeram em relação a esses assuntos, mostra que a campanha petista está fazendo exatamente aquilo de que a esquerda vive acusando pastores: explorar a boa fé do povo. E isso se percebe tanto pelo que a carta diz quanto pelo que a carta omite.
Veja-se, por exemplo, o trecho que trata do aborto, um dos assuntos mais caros ao eleitorado cristão e sobre o qual Lula dissera, em abril, que “deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha”. O candidato não chegou nem mesmo a copiar Dilma Rousseff em carta similar publicada na campanha de 2010; naquela ocasião, a candidata disse que, “eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto”, enquanto Lula não fez promessa semelhante, limitando-se a dizer que “este não é um tema a ser decidido pelo presidente da República e sim pelo Congresso Nacional”.
O autoproclamado “homem sem pecados” quer convencer o público evangélico de que, uma vez eleito, governará levando em consideração as preocupações dos cristãos a respeito da defesa da vida e da família
Essa tentativa de se esquivar da responsabilidade é mentirosa, pois um presidente pode orientar sua base aliada a votar contra um eventual projeto que legalize o aborto, ou vetar uma lei em caso de aprovação, mas Lula não se comprometeu com nada disso. Além disso, as últimas décadas mostraram que o Poder Executivo tem muitas ferramentas para fazer avançar o abortismo, como as normas técnicas do Ministério da Saúde (e foi no governo Lula que o boletim de ocorrência foi dispensado para a realização, no SUS, de abortos em caso de gravidez resultante de estupro) e a escolha de ministros abortistas para o Supremo Tribunal Federal, como é Luís Roberto Barroso, indicado por Dilma.
A confusão só cresce quando Lula, tendo jogado nas costas do Legislativo a responsabilidade completa sobre uma eventual legalização do aborto no Brasil, tenta puxar para si o crédito por projetos de lei aprovados no Congresso. É o caso da mudança no Código Civil que inclui as organizações religiosas na lista de pessoas jurídicas de direito privado: a Lei 10.825/2003, sancionada por Lula, foi resultado de um projeto de lei de autoria de um deputado do PL. Lula ainda se refere ao texto como “assegurando a liberdade religiosa no Brasil”, como se esse direito estivesse ameaçado de alguma forma antes da Lei 10.825, quando na verdade a liberdade religiosa já estava consagrada na Constituição de 1988.
Guilherme de Carvalho: A esquerda ama as igrejas evangélicas – desde que elas fiquem caladinhas
O ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado ainda tratou do tema das drogas – em que as comunidades cristãs têm um admirável protagonismo em seus esforços de recuperação de dependentes – ao prometer “fortalecer as famílias para que os nossos jovens sejam mantidos longe das drogas”. Aqui, no entanto, ele vai de encontro às diretrizes de sua própria legenda. A “descriminalização progressiva do consumo de drogas” consta no Caderno de Resoluções do 6.º Congresso Nacional do PT, realizado em 2017 (que, aliás, também pede a “descriminalização do aborto e regulamentação de sua prática no serviço público de saúde”). Mais recentemente, as Resoluções do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT listam, como uma das prioridades da legenda, “cessar a guerra às drogas: regular, descriminalizar, redução de danos, educação e saúde”. Como isso ajudará as famílias a manter os jovens longe das drogas é algo comparável à famosa quadratura do círculo.
O autoproclamado “homem sem pecados” quer convencer o público evangélico de que, uma vez eleito, governará levando em consideração as preocupações dos cristãos a respeito da defesa da vida e da família. Mas a verdade é que, como no ensinamento bíblico, não é possível a Lula servir a esses dois senhores: as plataformas petistas se chocam frontalmente com muito daquilo que os cristãos têm em altíssima conta. E, neste famoso trecho do Sermão da Montanha, Cristo continua dizendo que quem tem dois senhores “ou se dedicará a um e desprezará outro”. O histórico de Lula é suficiente para sabermos quem acabará prestigiado e quem acabará desprezado caso ele saia vencedor em 30 de outubro.
Eleições
Lula e os católicos
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Bruna Frascolla – Gazeta do Povo
Lula em encontro com religiosos em São Paulo.| Foto: RICARDO STUCKERT/ Divulgação
Um item essencial ao neoesquerdismo é a vontade de ser moralmente superior aos cristãos. E como eles provam isso? Adotando uma moral materialista e proletária tirada de algum marxista? Não, pois são nova esquerda, e a nova esquerda não lê Marx. O modo como eles provam isso é pinçando falas de Jesus na Bíblia, ou então soltando frases açucaradas sobre amor supostamente cristão, de modo que todo o mundo que não for um abraçador de árvores fofinho é um mau cristão. Vejam bem, o cristianismo surgiu na Antiguidade, reinou na Idade Média, então é altamente improvável que o entendimento do cristão como um fofinho que distribui abraços tenha tido validade histórica. Um mártir da Antiguidade, por sua disposição a morrer pelo cristianismo, na certa passaria por um extremista e um teocrata radical. Um cruzado medieval, por sua beligerância, logo seria enquadrado como fascista. Essa concepção de cristianismo como fofura e pieguice deve vir de alguma seita protestante dos EUA que nunca enfrentou guerra religiosa. Hillary Clinton era uma fervorosa devota da Igreja Metodista Unida e, a acreditarmos em Jonah Goldberg, seu comunitarismo piegas é uma versão laica da religião que professava. Como nos trópicos tudo se copia, a nova esquerda, e até a esquerda católica, resolveram que ser cristão é ser um bleeding-heart liberal – algo como “progressista de coração sangrando”, que é como os norte-americanos chamam a esquerda piegas lá deles. As táticas argumentativas são pouco discerníveis de chantagem emocional. Você é contra a distribuição de modess grátis? Então as meninas pobres não vão ter dignidade (sic) para menstruar. Vão ter que usar miolo de pão (sic!). Vão deixar de ir à escola. Você é contra quotas raciais? Um bilhão de negros morrem a cada minuto no Brasil por causa do racismo estrutural. Suas mãos estão sujas de sangue! Você é contra o aborto seguro e legal? O aborto é uma questão de saúde pública! Trilhões de mulheres morrem a casa segundo no Brasil enfiando miolo de pão, aliás, cabide e até fuligem de fogão, como eu ouvi em Jaguaquara na Bahia. As ricas fazem aborto e viram CEOs. As pobres morrem. Assassino! Não adianta tentar usar a razão. Se você fizer isso, é frio e insensível. A única reação aceitável é ir aos prantos e se arrepender da opinião prévia, aceitando logo todas as leis que se queira passar.
A Igreja católica de não muito tempo atrás
A Igreja católica sempre foi percebida pelo mundo protestante e rico como atrasada, obscurantista, rudimentar – mais ou menos como o universitário progressista vê os religiosos como um todo hoje, por mais que estudados. Parte desse atraso, obscurantismo e rudeza consistiram, durante o séc. XX, na recusa de pautas progressistas, tais como: a contracepção, o aborto, a eutanásia, a esterilização compulsória e eugênica, a proibição eugênica de casamentos interraciais, o racismo científico. Uso a expressão “progressista” por mera precisão histórica, pois a era presidida por esse movimento de elites se chamou Era Progressista, nos EUA, um país de formação protestante, no qual catolicismo era coisa dos pobretões irlandeses e italianos. A mesma ideologia reapareceu no final do século XX com rebatizando-se de “liberalismo”, mas o próprio nome “progressismo” nunca foi abandonado.
A própria oposição entre ser um adepto da Ciência e da Religião é uma decorrência de um particularismo dos EUA, onde o literalismo bíblico obriga ao criacionismo, por exemplo. A Igreja desde a Idade Média aderia à “ciência”, que era o aristotelismo. O problema do geocentrismo não decorria de literalismo bíblico, mas sim do fato de a Igreja ter adotado o pagão Aristóteles como autoridade máxima em questões filosóficas. A própria universidade é uma criação católica e medieval.
Outra diferença que vale ser pontuada entre o catolicismo e o protestantismo é que este último, uma vez que se partiu numa miríade de seitas, não tem uma opinião uniforme. O protestantismo é “homofóbico”? O universitário jura que sim, mas a Igreja Anglicana dos EUA, protestante, já se converteu num puxadinho do movimento LGBTQ. Silas Malafaia é protestante, a Igreja Anglicana é protestante, a Bola de Neve Church é protestante. Nos EUA, a luta contra o aborto conta com grande mobilização protestantes evangélicos – mas há protestantes favoráveis também. A Igreja Católica Apostólica Romana, não. Nela, não vale a autoridade de trechos bíblicos citados isoladamente; vale a autoridade do Papa, que, a seu turno, está sentado sobre uma ortodoxia construída através de vários séculos. Importa notar que o Papa não é considerado infalível 24h por dia, mas somente quando está falado ex cathedra. E por mais que Bergoglio seja propenso a afetações progressistas, fato é que o Papa nunca liberou o aborto.
Católicos progressistas enganam o eleitorado?
Recentemente estourou o conflito entre a cúpula e a base da Igreja católica no Brasil. Como mostrou esta coluna, os leigos do Centro Dom Bosco, apoiadores entusiasmados do católico Bolsonaro, já traziam o bispo do Cazaquistão para o Rio de Janeiro por não se sentirem representados pelos bispos da CNBB. A organização é contra o aborto, contra a legalização das drogas e contra o comunismo – acredita na Profecia de Cimbres, uma espécie de versão brasileira do Milagre de Fátima ocorrida no sertão pernambucano em 1936. Segundo ela, o Brasil tem que rezar e se penitenciar para o comunismo não banhar de sangue o nosso país.
Os membros do Centro Dom Bosco foram a Aparecida rezar o Rosário com Bolsonaro. Segundo relatam, a reitoria de Aparecida fez o possível para atrapalhar o evento, Bolsonaro acabou não indo para a reza, e eles (isso está documentado no vídeo) eram perturbados pelos sinos enquanto rezavam. Os sinos tocavam ininterruptamente, competindo com o microfone do organizador.
A lacração do bispo durante a celebração já foi apontada por observadores mais atentos do que eu. Quero apontar apenas que, num contexto eleitoral, o bispo adere à agenda desarmamentista das ONGs progressistas (“pátria amada não será armada”), mas não dá um pio sobre o aborto. Sabemos que Bolsonaro é contra o desarmamentismo e o aborto, e que Lula considera que o aborto “deveria ser transformado em uma questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha”, como disse em abril deste ano na Fundação Perseu Abramo. Noutras palavras, Lula adere à agenda das ONGs progressistas não só na questão do desarmamentismo, como também na defesa de que o aborto seja considerado um direito humano.
Mas calma, que piora. Marcia Tiburi, um estereótipo ambulante que goza de um cantinho especializado nas Frases da Semana, tem usado o Twitter para comparar a ascensão de Bolsonaro à de Hitler. O Cardeal e Arcebispo D. Odilo Scherer, após uma série de tuítes defensivos garantindo que escreveu muito contra o aborto, deu esta tuitada: “Para ser mais claro: parece-me reviver os tempos da ascensão do fascismo ao poder. E sabemos as consequências…”. É o tiburismo cultural tomando conta da cúpula católica brasileira.
O episódio do Centro Dom Bosco, aliado à aparição do Pe. Kelmon (que é de uma igreja obscura), foi muito usado para dizer que bolsonaristas odeiam padres e são falsos católicos. O teólogo por Roma e professor de comunicação da UFBA Wilson Gomes tuitou assim: “Mandem mais vídeos de bolsonaristas xingando padre. Isso tá fazendo um estrago nas intenções de voto em Bolsonaro lá na minha aldeia que nem lhes conto.” A “aldeia” dele deve ser a sua terra natal, uma cidade pequena no sul da Bahia que deve ser orgulhar do quão longe chegou Wilson Gomes. E o Nordeste é a região mais católica do Brasil.
Então vocês imaginem o tamanho do engodo que é imposto a essa população: os católicos que seguem o Vaticano são falsos e fascistas; Lula, que defende o direito ao aborto, é que é um bom católico. Wilson Gomes pode mandar vídeos sobre como os católicos bolsonaristas são maus; os bolsonaristas é que não podem mandar o vídeo em que Lula diz que ninguém deveria ter vergonha de fazer aborto, porque o TSE não deixa.
“Ninguém é a favor do aborto”
Justiça seja feita, a CNBB, por meio da pessoa do D. Odilo, de fato se posicionou contra o direito ao aborto. Mas, porém, contudo, todavia, quando se trata de influir nas eleições, os bispos não movem uma palha para impedir o direito ao aborto – ao contrário, já que atacam Bolsonaro.
A justificativa na ponta da língua dos wilsons gomes da vida é importada dos EUA. “Ninguém é a favor do aborto”, dizem, antes de entrar a ladainha dos zilhões de mulheres que morrem em abortos clandestinos porque iam fazê-lo de qualquer jeito. Já que as mulheres abortam de qualquer jeito, o bleeding-heart liberal quer que haja aborto público, gratuito, de qualidade, para mulheres. Como “ninguém é a favor do aborto”, teremos certeza de que adolescentes desmioladas (pleonasmo), mulheres drogadas ou irresponsáveis em geral jamais usariam e abusariam de algo público, gratuito, de qualidade, totalmente seguro (segundo a propaganda).
Se não bastasse o bom-senso, a macabra repercussão da reversão de Roe v. Wade no meio feminista e empresarial não deixaria crermos nisso. Vimos que o aborto de fato é tratado como um meio de contracepção, com as empresas passando-se por filantropas por custearem as viagens para o aborto das suas funcionárias – amparar a maternidade, que é bom, nada. Será que elas deixariam uma grávida que não quisesse abortar embolsar as despesas do aborto?
Virada na cultura
Durante as eleições de 2010, Serra, ex-presidente da UNE, passava por direitista por adotar a pauta contrária ao aborto. Talvez tenha sido nessa época que surgiu o “ninguém é a favor do aborto”, com Dilma dizendo: “Não acho que nenhuma mulher seja a favor do aborto. Como presidente da República, eu tenho de encarar o fato que há milhares de jovens, de adolescentes, que, diante do aborto, desprotegidas, fazem e adotam práticas, por que elas estão abandonadas.” Daí entra o papo de questão de saúde pública, que é abrir as portas (e os cofres) para a Planned Parenthood.
Seja como for, agora, em 2022, Lula está correndo atrás de todos os meios possíveis para se apresentar ao eleitorado como contrário ao aborto e até à possibilidade de se mudar de sexo. Foi o que ele fez no Flow há pouco, com direito à imprensa amiga declarando aos quatro ventos que Lula é “contra o aborto”.
Mas ele é contra o aborto “pessoalmente”, e, segundo alega, quem tem que dizer se pode ou não abortar é a lei. Dada a anomia jurídica reinante, essa não é uma posição muito animadora.
Em sua declaração contra o aborto, a CNBB disse que “ninguém poderá, no futuro, acusar a mesma Igreja de não ter falado claramente e defendido o primeiro direito dos nascituros: o respeito à sua vida.” Se aceitarmos a premissa de que a CNBB tem alguma relevância nas audiências do STF, é verdade. Mas eu não consigo imaginar Barroso ou Fachin deixando trilhões de mulheres morrerem porque representantes do heteropatriarcado capitalista querem controlar os corpos das mulheres.
Se havia uma hora de a CNBB tomar qualquer ação eficaz, era nas eleições. Assim, sua carta serve para lavar as mãos.
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