Eleições
Por
Guilherme de Carvalho
O papa Leão III coroa o imperador Carlos Magno, nas “Chroniques de France ou de Saint Denis”, do século 14.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
Apesar da vontade de fazê-lo, não devemos reclamar de dizer o óbvio. Especialmente pastores como eu, cuja tarefa inclui necessariamente o privilégio e a responsabilidade de anunciar o evangelho. Sim, o evangelho é o surpreendente, o contraintuitivo, o extraordinário; mas, se ele ilumina o ordinário, o que descobrimos sob a sua luz é frequentemente o real, desnudo e comum, a trivialidade em toda a sua glória. Nesse sentido o evangelho simplifica bastante a vida.
E essa é a verdade simples e comum: a igreja não vota, porque não é cidadã de país nenhum na face dessa terra amaldiçoada pelo pecado. Estava a igreja, por acaso, presente à assinatura do contrato social, no tempo em que éramos lobos (ao menos segundo a ficção hobbesiana)? Sim, a igreja coroou reis; mas, quando o fez, validou o poder terreno de fora e de cima.
Pois o fato é que a igreja representa outra ordem política, tal qual uma embaixada, como o teólogo político Jonathan Leeman aponta em As Chaves do Reino. Uma embaixada singular, porque não representa um território, mas um tempo futuro. No evangelho cristão, a ressurreição de Jesus Cristo foi entendida como uma visitação do futuro divino, uma antecipação do Juízo Final e da futura ressurreição dos mortos. Uma verdadeira janela escatológica para um mundo novo, e a confirmação de que o modo de vida de Jesus Cristo tornou-se a régua suprema, o prumo que mede cada existência humana.
Foi a esperança evangélica que permitiu aos cristãos honrar as autoridades sempre que possível, e desobedecê-las sempre que necessário, e isso nos levou a este mundo moderno
Assim teve início a rebelião cristã. Doravante, o que reis, presidentes, constituições e polícias dizem perdeu toda absolutidade; tudo é suspenso com a vida do messiânico, como o expôs tão bem Giorgio Agamben. Essa suspensão deu aos cristãos primitivos a coragem para dizer na cara de imperadores romanos que o Senhor Jesus, Kyrios Christos, era o Rei dos reis. Foi a esperança evangélica que permitiu aos cristãos honrar as autoridades sempre que possível, e desobedecê-las sempre que necessário, e isso nos levou a este mundo moderno.
Isso não significa, evidentemente, que esses cristãos não fossem súditos, cidadãos e mesmo agentes de poder nos reinos terrenos; mas sua dupla cidadania criava obrigações singulares. Eles deveriam aplicar a si mesmos a régua de Cristo no trato com o poder. Se fracassaram mais vezes do que acertaram, até nisso tornaram-se testemunhas do julgamento divino e da vitória de Cristo.
Para além dos atos individuais e coletivos desses cidadãos-peregrinos, no entanto, estão as igrejas cristãs, em suas várias configurações locais, regionais e globais. Elas têm sua atividade principal, que gira ao redor do culto religioso, à formação ética, e ao envio para a sociedade, para sinalizar o reino vindouro. O cidadão-peregrino vota, enviado pela igreja para votar bem, votar eticamente e responsavelmente, para promover o bem comum onde estiver, para promover a liberdade e construir sociedades fraternas.
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Mas a igreja, que o envia, é uma embaixada de outro país. Suas regras internas, suas crenças e princípios, não se sujeitam a deliberações democráticas, a cartas constitucionais ou a escrutínios jurídicos – exceto, naturalmente, em assuntos que dizem respeito a direitos e deveres temporais, como compras e vendas, registros cartoriais, uso de espaços físicos e todo o aparato juridicamente relevante. As embaixadas cristãs formam pais, professores, filhos, trabalhadores, artistas, literatos, políticos e eleitores, mas não votam, não pagam impostos, nem precisam ser autorizadas a funcionar, porque não são entes nacionais nem estatais.
Desse fato se depreendem algumas implicações significativas; por um lado, implica uma enorme liberdade, já que dentro da igreja o indivíduo está em um “território” livre – e as modernas liberdades religiosas devem muito a esse entendimento. Na igreja nenhum governo secular, universidade, polícia ou movimento pode apitar. Por outro lado, implica um limite de esferas; as igrejas não podem votar nem governar temporalmente. Esse é o fundamento originário da laicidade do Estado: uma vez que o eschaton ainda não se consumou e a Civitas Dei ainda não se manifestou, vivemos no entretempos, o Saeculum no sentido agostiniano.
Uma questão importantíssima, associada a esta, é a natureza da orientação dada pela igreja a seus membros na questão do voto. Certamente o voto tem implicações morais; a escolha de um candidato, em um pleito, envolve conhecimento e deliberação crítica sobre a sua agenda moral e sobre a sua visão do que é uma boa sociedade – vamos chamar isso tudo de “doutrina social”. Ora, as igrejas sempre têm, explicitamente ou implicitamente, doutrinas sociais; e, ao trabalhar na formação de seus membros, tendo em vista a sua dupla cidadania, essas doutrinas sociais influenciarão nos pleitos e na prática da cidadania.
Uma igreja pode ensinar uma doutrina social e pode repreender membros que defendam agendas contrárias a essa doutrina social. Mas há uma coisa que ela não pode fazer: ordenar a seus membros o voto
Mas há uma linha muito clara aqui: uma igreja pode ensinar uma doutrina social; pode até mesmo comparar as agendas de diferentes programas de governo com essa doutrina social; pode repreender membros que defendam agendas contrárias a essa doutrina social; pode até mesmo – embora isso me pareça temerário – recomendar o voto em alguém que apoie a sua doutrina social. Mas há uma coisa que ela não pode fazer: ordenar a seus membros o voto. A igreja não pode obrigar o cristão a votar, nem obrigá-lo a votar em um candidato em especial. Na verdade, a igreja pode exigir do cristão uma vida cidadã, mas não pode controlá-lo ou substituir seus poderes em absolutamente nenhuma deliberação política.
Sobre isso fui questionado por amigos: “mas e se crente votar em um candidato abortista”? Mencionei isso noutro dia, em minhas mídias sociais: se um fiel apoiar uma agenda especificamente anticristã ou contrária à doutrina social de sua igreja, é claro que ele está violando suas obrigações como membro da pátria celestial, e por isso merece disciplina no âmbito da vida eclesiástica. O membro da igreja não é livre, enquanto membro, para viver e ensinar princípios opostos à sua igreja. Se ele quer fazê-lo, deixou de ser um fiel, efetivamente, e é justo que perca a sua cidadania eclesiástica. Traidores de qualquer pátria merecem sanções, e mudar de nação pode ser a coisa mais honesta a fazer.
O caso, no entanto, é que não é sempre fácil compreender as razões de um voto. Peço ao leitor que me acompanhe em um experimento mental:
Um sujeito talvez vote no candidato Lula porque é abortista convicto e acredita que esse candidato favorecerá sua agenda. Esse sujeito contradiz a doutrina social de sua igreja. Mas ocorre de outro sujeito votar em Lula (acertadamente ou não) porque acredita que ele não oferecerá risco à luta antiaborto, e que o candidato Bolsonaro oferece risco à educação ou à saúde pública; talvez ele tenha um grande amigo, jurista, que o tenha convencido de que Lula é “inocente”, desencaminhando seu entendimento da questão. Ele vota em Lula de boa consciência, e sem a intenção de negar a doutrina social de sua igreja.
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Por outro lado, pode também ocorrer de um crente professo, secretamente abortista, preferir votar em Bolsonaro porque sofreu perseguição de lulopetistas na universidade, guardou grandes mágoas na alma, e jurou para si mesmo jamais votar na esquerda. Ele vota em Bolsonaro com hipocrisia e com ódio na alma. Ora, nesse caso aquele eleitor de Lula pode ser – sem entrar no mérito da sabedoria em seu voto – mais cristão que este eleitor de Bolsonaro.
Mas são muitas as pautas que podem gerar complexidades. Os lulistas costumam acusar os eleitores de Bolsonaro de desprezar a questão ambiental, e de ser assassinos de florestas. Ora, é verdade que boa parte dos bolsonaristas não entende nem quer entender as questões da mudança climática e da crise do Antropoceno; muitos estão entalados de pseudociência ambiental. Mas pense bem: se um bolsonarista está convencido, por ignorância ou por má orientação, de que Bolsonaro não oferece risco para as florestas brasileiras, e decide desconsiderar essa pauta em sua deliberação eleitoral, uma decisão de votar no candidato que defende a família de modo mais claro seria mesmo a decisão mais racional. Nesse caso, um pastor lulista não poderia julgar o caráter e a fé de sua ovelha bolsonarista. E o mesmo vale para outros temas, como livre mercado, combate à corrupção, homeschooling, Bolsa Família, segurança pública, liberdade de imprensa, saneamento básico, emprego, laicidade do Estado e mil outros assuntos.
Não pretendo, de modo algum, recomendar aqui qualquer relativismo no campo político; não penso que “qualquer coisa serve”. Mas o mero voto nada diz sobre a qualidade do cristianismo de alguém. O voto só é base para questionar a fidelidade de um membro da igreja quando o voto do fiel é explicitamente fundado em uma negação da doutrina social da sua igreja. E a única forma de sabê-lo é por meio de comunhão, conversas francas, e o que é chamado nas igrejas cristãs de “pastoreamento”. Não é algo que possa ser feito no atacado; os sacerdotes, pastores e líderes precisam conhecer seu rebanho pessoalmente.
Como o voto de cabresto, o “voto de cajado” é uma perversidade, seja ele praticado em igrejas de maioria bolsonarista, seja em igrejas com maioria esquerdista
Pastores e padres não são oniscientes, embora alguns o desejassem. Não somos deuses para julgar o coração dos membros das nossas igrejas. Podemos julgar e agir, sim, quando eles renegam a sua fé com suas palavras e com seus atos, mas o voto individual, numa sociedade democrática, e em um pleito tão polarizado quanto este que se desenrola agora, simplesmente não é suficiente para chegar a qualquer conclusão significativa.
De modo, meus caros, que a igreja não deve nem pode votar, nem mesmo indiretamente, através do controle do voto de seus membros. Como o voto de cabresto, o “voto de cajado” é uma perversidade, seja ele praticado em igrejas de maioria bolsonarista, seja em igrejas com maioria esquerdista. O assédio e o controle do voto dos membros, que, embora não seja generalizado, vem se tornando cada vez mais comum, pode configurar verdadeiro abuso de poder religioso. As igrejas devem, sim, ensinar doutrina social e exigir de seus fiéis o que lhe é de direito – a fidelidade confessional e moral. Mas, se a igreja abre mão de ser uma embaixada do Reino de Deus para se reduzir a um diretório partidário e uma polícia política, caiu em evidente apostasia. Nesse caso, cabe ao bom cristão confrontar sua igreja doente ou, quando for o caso, buscar uma igreja de verdade.
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