Editorial
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Gazeta do Povo
Lula faz seu primeiro pronunciamento como presidente eleito, em São Paulo.| Foto: Sebastião Moreira/EFE
Em um país cuja história política é pródiga em bizarrices, podemos dizer com toda a certeza que nada supera a normalização da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Falamos de alguém que foi condenado por corrupção em dois processos, com um conjunto probatório farto, tendo ambas as condenações confirmadas por unanimidade no tribunal revisor e uma delas, também de forma unânime, mantida no Superior Tribunal de Justiça, atestando a ausência de ilegalidades processuais. E esse alguém só voltou a se tornar um ficha-limpa porque a principal corte do país inventou – e a palavra é essa mesma – um “problema de CEP”, revertendo decisões que ela mesma havia tomado sobre quem deveria julgar Lula; e uma suspeição absurda que anulou todos os atos processuais do então juiz Sergio Moro, garantindo que Lula jamais tivesse de pagar novamente pelos atos que o levaram à prisão em 2018. Por fim, essa pessoa não apenas disputou a Presidência, mas o fez com apoio maciço da sociedade civil organizada e dos formadores de opinião, que ignoraram todo esse passado para tratar Lula como uma opção aceitável – e até desejável – para o Planalto.
Mas Lula será o próximo presidente do Brasil, tendo vencido o segundo turno com quase 51% dos votos válidos, ou 60,3 milhões de votos, apenas 2 milhões a mais (ou 1,8 ponto porcentual de vantagem) que o atual mandatário, Jair Bolsonaro. Em seu primeiro pronunciamento após a confirmação do resultado, Lula ressaltou sua “ressurreição” política e destacou “um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias”, já que sua campanha acabou conquistando o apoio de diversas outras forças políticas. O arco construído por Lula inclui antigos críticos – a começar pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, que enfrentara Lula em 2006 – e antigos criticados, caso de Marina Silva, vítima de uma campanha sórdida do petismo em 2014, e dos economistas responsáveis pelo Plano Real. Muitos deles, é verdade, guiados mais pelo antibolsonarismo que por algum entusiasmo em relação a Lula.
Para que Lula e o PT façam uma boa gestão, terão de renegar tudo o que o partido defende historicamente tanto em termos econômicos quanto sociais
Esta não foi, no entanto, uma eleição marcada pelo equilíbrio que desejaríamos para uma disputa tão acirrada. Não porque tenha havido fraudes ou irregularidades, nem por causa do apoio maciço a Lula na imprensa e na sociedade civil (pois faz parte do jogo democrático que esses setores possam ter e manifestar sua opinião), mas porque a autoridade a quem caberia garantir a igualdade de armas entre os candidatos falhou em sua missão. Independentemente da intenção e das convicções dos ministros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda que eles estivessem plenamente convencidos de que estavam defendendo a democracia e apenas combatendo a mentira, o fato é que eles introduziram uma distorção grave no pleito com suas decisões. A Constituição foi atropelada com a instituição da censura, incluindo a ainda mais vergonhosa censura prévia; fatos verídicos, mas inconvenientes a respeito de Lula não puderam ser veiculados, enquanto à campanha petista permitia-se praticamente tudo, graças a uma duplicidade de critérios aplicados a cada candidato. O debate não foi livre como deveria ter sido, e esta é uma mancha que não tem como ser removida da história desta eleição.
O que desejar para um Brasil governado por Lula? O que se espera é que o petista faça um bom governo; se ele governar mal, todos os brasileiros sofrerão as consequências, independentemente de quem tenham escolhido, e o Brasil não merece o retorno aos tempos de crise econômica, social e moral vividos até não muito tempo atrás. Mas também é preciso sermos realistas: para que Lula e o PT façam uma boa gestão, terão de renegar tudo o que o partido defende historicamente tanto em termos econômicos quanto sociais. É possível que isso ocorra? Em primeiro lugar, será preciso definir se as alianças costuradas por Lula em sua campanha serão efetivamente levadas em consideração, puxando o próximo governo mais para o centro, ou se serão descartadas, agora que o objetivo principal já foi atingido. Isso será conhecido apenas à medida que a equipe do próximo presidente for divulgada, especialmente em pastas-chave como Economia, Saúde, Educação, Infraestrutura e os ministérios ligados a políticas sociais.
A segunda barragem que pode evitar uma guinada forte à esquerda do novo governo está no Congresso. Certamente o habitual oportunismo político ajudará Lula a construir uma maioria, com partidos que hoje estão na base aliada de Bolsonaro migrando, totalmente ou ao menos em parte, para o apoio ao próximo presidente. Mas, a julgar pelo perfil dos parlamentares eleitos, não é certo que Lula tenha vida fácil no Congresso, especialmente no Senado. E basta uma das casas para frear qualquer loucura socioeconômica ou identitária que o petismo queira implantar e que necessite do aval do Legislativo. É o tipo de cenário que pode levar ou a um maior senso de responsabilidade da parte do governo, que passaria a propor pautas mais razoáveis, ou a um impasse, com a insistência do Planalto na radicalização sendo barrada no Congresso. Mas uma relativa paralisia ainda será muito melhor para a nação que um passe livre para a implantação da pauta econômica e social da esquerda.
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