Editorial
Por
Gazeta do Povo
Caminhoneiros bloqueiam a rodovia BR-158, em Santana do Livramento (RS).| Foto: Marcelo Pinto/A Platéia/Fotos Públicas
Quando grupos pouco afeitos ao respeito às liberdades, à lei e à ordem se acham no direito de fazer o que bem entenderem, o resultado é a escalada das tensões e a potencial convulsão social em um país que precisa desesperadamente de pacificação após um período eleitoral conturbado. É o caso dos bloqueios realizados por caminhoneiros apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que continuam ocorrendo em 20 estados e no Distrito Federal, interrompendo o trânsito em rodovias e em acessos a aeroportos como o de Guarulhos (SP), apesar da ordem judicial para a liberação das estradas e das ações da Polícia Rodoviária Federal para restabelecer o fluxo viário.
Os caminhoneiros começaram a bloquear as rodovias no dia seguinte à vitória de Lula no segundo turno da eleição presidencial, sem uma coordenação definida – mesmo líderes da greve de 2018 demonstraram sua contrariedade com o protesto e afirmaram não ter ligação com ele – e sem uma pauta concreta, ou factível. Alguns grupos chegaram a afirmar que só liberariam as rodovias em caso de golpe militar, eufemisticamente chamado de “intervenção”, baseando-se em uma interpretação completamente equivocada do artigo 142 da Constituição.
Nem mesmo as reivindicações consideradas mais nobres ou justas podem servir de pretexto para a violação da liberdade alheia
A frustração com a derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula é compreensível. Milhões de brasileiros têm consciência do que o retorno do petismo ao poder representa em termos de degradação institucional, socioeconômica e moral, e esta Gazeta do Povo repetidamente mostrou a seus leitores os enormes riscos de uma volta de Lula ao Planalto. Mas também temos dito repetidamente que nada, nem mesmo as reivindicações consideradas mais nobres ou justas, pode servir de pretexto para a violação da liberdade alheia. Afirmamo-lo na greve dos caminhoneiros de 2018 e nos bloqueios de 2021, mas também quando a esquerda invadiu escolas e universidades e quis impedir o funcionamento normal das instituições ao tentar forçar a entrada em edifícios governamentais e invadir plenários legislativos. Especialmente contraditório é que um grupo político-ideológico que, nos últimos tempos, proclamou a defesa de liberdades como a de expressão e de imprensa agora se proponha a abater a liberdade alheia de ir e vir, ainda por cima provocando o risco de desabastecimento. O direito de manifestação é legítimo, mas fazê-lo atropelando o direito alheio é a antítese da democracia.
Ainda mais absurda, entretanto, é a pretensão do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto de se organizar para desbloquear rodovias por conta própria. O MTST não faz parte das forças de segurança e, caso concretize essa intenção de se comportar como milícia paramilitar, merecerá da parte dos legítimos detentores da força – as polícias e, se necessário, as Forças Armadas – a mesma repressão devida aos caminhoneiros que resistirem à ordem judicial de liberação das estradas. Dado todo o histórico do movimento de Guilherme Boulos e de seu “irmão” rural, o MST, parece difícil que a intenção dos sem-teto seja a promover qualquer pacificação que seja, já que se trata de grupos que vivem da radicalização.
Convicções da Gazeta: Cultura democrática
Se os inimigos da democracia de ambos os lados do espectro político encontram espaço para agir, eles o fazem também graças ao silêncio daqueles que poderiam agir para acalmar os ânimos. O Brasil democrático repudia tanto os bloqueios dos caminhoneiros quanto o delírio paramilitar dos sem-teto, mas precisa da palavra firme do atual presidente e do presidente eleito – até a tarde de terça, Bolsonaro manteve um silêncio inexplicável em vez de reconhecer logo o resultado das urnas e garantir uma transição civilizada, por mais contrariado que esteja em relação ao desfecho deste segundo turno. Quando falou, Bolsonaro não condenou abertamente o movimento dos caminhoneiros, mas de fato o desautorizou ao afirmar que não se pode violar o direito de ir e vir. Menos mal: quem se orgulha de jogar nas “quatro linhas” da Constituição não tem como promover, nem endossar (ativamente ou com o silêncio) aventuras inconsequentes como as que estão sendo promovidas nas rodovias brasileiras.
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