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Paulo Uebel


Plenário do TSE quando maioria dos ministros referendou censura a documentário da Brasil Paralelo.| Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Não foi só a volta do PT (Partido dos Trabalhadores) que marcou as eleições de 2022. Outro fenômeno político inesperado foi o grande protagonismo de instituições que, historicamente, foram discretas durante o pleito eleitoral: o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mentira se combate com a verdade, usando dados, evidências e fontes confiáveis, não com a censura e, muito menos, com um tribunal da verdade. Infelizmente, algumas autoridades escolheram a segunda opção, mesmo quando o alvo nem se tratava de mentira.

A insegurança jurídica trazida por algumas decisões do próprio Poder Judiciário gerou desconfiança em milhões de eleitores, que, depois do segundo turno, passaram a protestar nas ruas, descontentes e desconfiados com o resultado das urnas. Luiz Inácio Lula da Silva foi o vencedor da eleição de 2022. Para um cidadão desconfiado, as ações das autoridades poderiam tranquilizar ou gerar ainda mais desconfiança. Este ano, lamentavelmente, as autoridades geraram mais desconfiança e alimentaram uma narrativa de que a censura era um mal necessário para preservar o Estado Democrático de Direito. Como nação, todos nós perdemos.

Órgão máximo da Justiça Eleitoral brasileira, o TSE foi criado em 1932. E deve, oficialmente, ser o responsável pela administração do processo eleitoral no país, conforme consta na Constituição Federal de 1988, no Código Eleitoral de 1965, na Lei das Eleições e na Lei de Inelegibilidade. “Além de coordenar os trabalhos eleitorais do país e realizar a diplomação do presidente e vice-presidente da República, a Corte Eleitoral também tem como atribuições julgar recursos interpostos contra as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e responder às consultas sobre matéria eleitoral feitas por autoridades com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político”, diz, sobre si mesmo, o TSE.

Imagine se um jornal fosse proibido, pelo governo, de circular nos dias anteriores ao pleito sob o pretexto de que suas matérias ou editoriais poderiam influenciar a opinião dos eleitores?

Oficialmente, não é função do TSE praticar a censura prévia, uma das maiores artimanhas das ditaduras. Apesar de não possuir essa competência, o TSE praticou censura prévia contra a produtora Brasil Paralelo a pedido do PT: o ministro Benedito Gonçalves censurou o documentário Quem mandou matar Jair Bolsonaro, antes mesmo do seu lançamento, que deveria ter ocorrido no dia 24 de outubro. A exibição do documentário foi proibida até o dia 31 – portanto, até o dia seguinte ao fim do segundo turno –, com multa diária de R$ 500 mil em caso de descumprimento de sua ordem. Pelo que tudo indica, o objetivo era apenas que o documentário não influenciasse nos votos. Mas isso é correto em uma democracia?

A censura do documentário da Brasil Paralelo foi confirmada pelo TSE por 4 votos a 3: Benedito Gonçalves teve sua posição acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Raul Araújo, Carlos Horbach e Sérgio Banhos votaram contra. “Sem que se saiba o teor da manifestação artística, não se admite, me parece, no Estado Democrático de Direito, o exercício de censura sobre o pensamento ainda não divulgado, sob pena de se estar a presumir o conteúdo, de antecipar a presunção quanto ao seu ajuste ao ordenamento, e antecipar presumidamente uma sanção ao pensamento”, afirmou, sabiamente, o ministro Raul Araújo ao se posicionar contra a censura.

Já o ministro Carlos Horbach chamou atenção para o fato de que o PT fez “ilações” a respeito do documentário da Brasil Paralelo. “A petição inicial, com 153 laudas, enfrenta a questão do documentário em um único parágrafo. Com essa limitada análise, conclui com a suposição de que o documentário, cujo conteúdo se desconhece, será prejudicial à campanha do candidato e que, por isso, não pode ser veiculado, em aparente contraste com o artigo 220 a Constituição Federal”, disse ele.

“A Constituição, no campo da liberdade de expressão, manda que, independentemente das circunstâncias políticas e das conveniências ideológicas, o Estado (e, evidentemente, o Estado-juiz) se abstenha de praticar qualquer tipo de censura. Note-se que, no âmbito mesmo da liberdade de expressão, as colisões entre princípios costumam ocorrer depois que, por exemplo, determinada informação passou a circular. Não se trata de impedir a sua circulação, mas, dentro do paradigma da proporcionalidade, examinar eventual configuração do ilícito”, declarou, em nota contra a censura prévia ordenada pelo TSE, o Instituto Liberal.

As censuras, paradoxalmente, servem de combustível para a escalada da violência política, e alimentam teorias da conspiração. Se não há segredo de estado a ser escondido, não há razão para interditar a livre circulação de ideias, inclusive de ideias ruins.

E além da censura prévia da Brasil Paralelo, o ministro do TSE Benedito Gonçalves também ordenou a suspensão da monetização da própria Brasil Paralelo e também dos canais Foco do Brasil, Folha Política e Dr. News no YouTube. Os canais também foram proibidos de impulsionar conteúdos político-eleitorais, especialmente sobre Jair Bolsonaro e Lula. Em caso de desobediência, os canais teriam de pagar multa de R$ 50 mil por dia. Imagine se um jornal, como a Folha de S. Paulo, fosse proibido, pelo governo, de circular nos dias anteriores ao pleito sob o pretexto de que suas matérias ou editoriais poderiam influenciar a opinião dos eleitores. Imagine se um canal de televisão fosse impedido, pelo governo, de veicular notícias sobre os candidatos à Presidência na semana anterior à votação. Provavelmente, o chefe do Poder Executivo seria chamado de ditador. Então, será que um tribunal eleitoral deve ter esse poder? Isso é compatível com uma democracia constitucional?

Do início da corrida eleitoral até o dia 20 de outubro, o Tribunal Superior Eleitoral atendeu a 60 pedidos do Partido dos Trabalhadores para remover da internet e da propaganda eleitoral conteúdos que associavam Lula a temas como crime organizado, escândalos de corrupção, ao assassinato de Celso Daniel, à ditadura da Nicarágua, aborto, drogas e agenda LGBT, como contabilizou o jornalista Renan Ramalho na Gazeta do Povo. As 60 decisões que beneficiaram a campanha de Lula representam uma taxa de 64,5% de sucesso para o petista. E 50 das 60 decisões foram contra posts e vídeos publicados pelo próprio Bolsonaro e por seus apoiadores nas redes sociais.

“A sensação que me resta é a de uma tentativa, via Judiciário, de reescrever o passado ou, então, determinar o futuro. O jogo do pensamento não se afigura, na minha opinião, equilibrado”, analisou o advogado eleitoral Richard Campanari sobre as decisões do TSE favoráveis ao PT. Mas não parou por aí. O TSE também emitiu uma série de decisões contra a emissora Jovem Pan. Como resultado, a emissora foi obrigada a orientar seus jornalistas e comentaristas a não utilizarem palavras como “ladrão”, “descondenado”, “ex-presidiário”, “corrupto” e “chefe de organização criminosa” para se referirem a Lula, de modo a evitar represálias do Judiciário.

Uma das decisões mais impactantes do TSE foi a censura do site O Antagonista em plena votação do primeiro turno, no dia 2 de outubro. O presidente do TSE e ministro do STF Alexandre de Moraes mandou o site jornalístico O Antagonista retirar do ar a reportagem sobre a preferência do criminoso Marcola, líder do PCC, assim como a própria organização criminosa, pela eleição de Lula. Em caso de descumprimento da decisão, o site teria de pagar multa diária de R$ 100 mil. Moraes chamou o conteúdo da reportagem de “sabidamente inverídico”, mas O Antagonista transcreveu falas de Marcola e outros membros do PCC de áudios interceptados pela própria Polícia Federal. Será que esse tipo de censura contribui para o processo eleitoral ou gera desconfiança no eleitor?

Ao impedir o processo eleitoral de ser pautado pela livre circulação de ideias, livre acesso às informações e pelo livre, amplo e irrestrito debate de propostas e perfis dos candidatos, uma parte expressiva da população ficou com a impressão de que as eleições não foram livres e justas.

“A Constituição é clara ao não admitir censura à imprensa. A legislação brasileira conta com uma série de mecanismos para dirimir eventuais abusos na liberdade de expressão, mas nele não se encontra a censura. Lamentável, portanto, a decisão, que contraria frontalmente a Constituição”, disse à Folha de S. Paulo o presidente executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, em crítica à decisão de Alexandre de Moraes. Vários outros especialistas também questionaram a decisão. Em uma democracia, não se combate desinformação com censura, mas com mais informações, dados e evidências. As fake news, infelizmente, fazem parte dos regimes democráticos, assim como as censuras fazem parte dos regimes autoritários.

Antes disso, no dia 23 de agosto, Alexandre de Moraes ordenou que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão contra oito empresários que trocavam mensagens num grupo de WhatsApp com críticas ao sistema de apuração de votos brasileiro e ao STF. Além da busca e apreensão, os empresários também sofreram bloqueio de contas e suspensão de perfis nas redes sociais, quebra do sigilo bancário e telemático (de mensagens). Essas medidas parecem razoáveis e proporcionais? Infelizmente, não. Até hoje, muitos desses empresários seguem censurados nas redes sociais, mas o pior é a autocensura que milhares de pessoas adotaram depois de assistirem essas violações persistirem.

A censura continuou mesmo após as eleições. O pastor e cantor André Valadão, o deputado eleito por Minas Gerais Nikolas Ferreira e o cantor Latino tiveram suas contas suspensas nas redes sociais (Twitter e Instagram) por ordem judicial. O TSE havia avisado, anteriormente,  que pediria a suspensão de perfis nas redes sociais que promovessem notícias falsas sobre o resultado das eleições. Mais uma vez, escolheram o pior caminho para lidar com conteúdos supostamente falsos ou de teor duvidoso. A censura à conta de Marcos Cintra, ex-secretário da Receita Federal, que fez questionamentos ao TSE, reforçou a percepção de que o debate foi interditado. As censuras, paradoxalmente, servem de combustível para a escalada da violência política, e alimentam teorias da conspiração. Se não há segredo de estado a ser escondido, não há razão para interditar a livre circulação de ideias, inclusive de ideias ruins.

Por esses e outros exemplos, fica claro que a retirada de informações, censura de contas e as frequentes intervenções do Judiciário prejudicaram a qualidade do debate eleitoral durante e, inclusive, depois das eleições. Assim, embora não se possa afirmar que o resultado das eleições teria sido outro, ao impedir o processo eleitoral de ser pautado pela livre circulação de ideias, livre acesso às informações e pelo livre, amplo e irrestrito debate de propostas e perfis dos candidatos, uma parte expressiva da população ficou com a impressão de que as eleições não foram livres e justas. Não iremos mudar essa percepção calando mais pessoas e perseguindo cada cidadão que tenha dúvidas. Vamos mudar essa percepção somente contrapondo as dúvidas de forma clara, transparente e bem fundamentada. Novamente, a melhor arma contra a mentira será sempre a verdade.

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Como guardião da democracia, caberia ao TSE garantir que os eleitores tivessem o máximo de informações possíveis sobre seus candidatos, mesmo em relação a assuntos mais delicados, como a prisão de Lula e o apoio de grupos criminosos a ele. É difícil sustentar, para um antipetista, que o TSE não beneficiou Lula com suas decisões. Por outro lado, era importante que os eleitores também tivessem amplo acesso a todas as declarações do Bolsonaro durante a sua vida profissional, por mais infelizes que fossem. O antibolsonarismo merece ter acesso ilimitado às informações e declarações desse candidato, mesmo que tirasse votos dele. Impedir esse acesso prejudica o exercício de um direito humano fundamental: formar sua opinião livremente, sem qualquer tutela ou restrição por parte das autoridades estatais. Não é censurando os dois lados que promovemos a liberdade de expressão e fortalecemos a democracia.

Reconhecer isso não significa concordar com os bloqueios de estradas que muitos apoiadores de Bolsonaro fizeram na semana que sucedeu o resultado das eleições. A liberdade de ir e vir, assim como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade política e a liberdade econômica são direitos humanos fundamentais que não podem ser cerceados. É impossível viver em um país democrático, próspero e livre sem respeitar as liberdades uns dos outros. Nenhuma pessoa, grupo, coletivo, sindicato ou ONG (organização não governamental) pode se manifestar restringindo direitos e liberdades de terceiros. Uma democracia plena não deve permitir que invasões e restrições às liberdades individuais aconteçam.

Durante décadas no Brasil, muitos grupos radicais de esquerda, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e sindicatos usaram estratégias de invadir propriedades, fechar fábricas e limitar direitos de terceiros para impor suas agendas. A esquerda apoiava. Se quiser ser bem-sucedida, a direita não deve imitar esses péssimos exemplos, e deve se manifestar democraticamente, sem afetar os direitos dos demais, sem interromper as vias, sem impedir a população de trabalhar. A coerência é fundamental para qualquer grupo que queira ter relevância e credibilidade.

Uma democracia plena precisa de instituições sólidas, fortes e inclusivas que garantam as liberdades individuais e que não sejam coniventes com abusos e violações. E isso deve partir de cima! As autoridades devem começar dando o exemplo. A decisão de Alexandre de Moraes de autorizar os governadores a utilizarem as tropas da Polícia Militar (PM) para acabar com os bloqueios das estradas e, assim, proteger o direito de ir e vir dos cidadãos é louvável, mas não suficiente. O TSE e o STF devem respeitar os direitos e garantias dos cidadãos, e pausar a escalada de decisões que restringem as liberdades de expressão e de imprensa.

Não há país democrático sem plena liberdade de expressão e de imprensa. Não podemos, portanto, aceitar qualquer retrocesso, seja de quem for. A censura jamais será um instrumento de fortalecimento do Estado Democrático de Direito. A censura é, e sempre foi, um instrumento dos regimes autoritários que querem controlar a opinião pública e seus cidadãos pelo uso da força e da intimidação. Sabemos, muito bem, ao lado de quais países e regimes queremos estar. Liberdade sempre!


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