Responsabilidade com a informação
Filipe Figueiredo


Sessão plenária do Conselho de Segurança da ONU em 16 de novembro: governo russo acusou a Ucrânia e a Polônia de tentar provocar um “confronto direto” entre a Rússia e a OTAN ao culpar Moscou pela queda de um míssil em território polonês| Foto: EFE/Eskinder Debebe/ONU

Na semana passada, dia 15 de novembro, dois cidadãos poloneses morreram em seu país quando um míssil caiu na cidade de Przewodów. Em um primeiro momento não se sabia exatamente a origem do projétil e o que aquilo poderia significar. A busca por informação e pelo chamado furo de reportagem, quando a informação é publicada pela primeira vez, foi incessante e, junto com isso, uma chuva de “análises” sensacionalistas. Um desdobramento novo nos últimos dias contribui para a compreensão do que aconteceu semana passada.

Os leitores talvez tenham reparado que o incidente em território polonês sequer havia sido abordado aqui em nosso espaço. Cabe uma breve recapitulação. Por volta de 15h40 do dia 15 de novembro, horário local, dois agricultores poloneses morreram após uma explosão perto da fronteira do país com a Ucrânia. Naquele dia, quase cem mísseis russos foram disparados contra o território ucraniano, no maior bombardeio desde o início da guerra, visando a infraestrutura essencial da Ucrânia, como usinas de energia elétrica.

No momento dos ataques dois cidadãos poloneses, infelizmente, morreram. Muitas pessoas, incluindo jornalistas, acadêmicos e ditos analistas, rapidamente concluíram: “foi um míssil russo”. Daí, pularam para o fato de que a Polônia é um país integrante da OTAN, logo, supostamente seria um “ataque contra a OTAN”. Consequentemente, seria o início da Terceira Guerra Mundial, em um sensacionalismo superficial de dar inveja aos “craques” do sensacionalismo dos programas policiais vespertinos.

Terceira Guerra Mundial

Esse comportamento também ocorreu no Brasil e muita gente repetiu esse processo citado. Em um rede social, o termo “Terceira Guerra Mundial” foi o mais compartilhado naquele dia. Um olhar mais calmo e, justamente, analítico, entretanto, lembraria que havia muito pouco de concreto. Mesmo na noite daquele dia, com a diferença de horário de quatro horas entre Brasil e Polônia, era prudente manter a calma e o ceticismo perante o que havia de concreto.

Naquele momento, era basicamente apenas a imprensa que afirmava que teria sido um míssil russo. O governo Morawiecki convocou seu conselho de segurança nacional e afirmou que poderia ativar o artigo 4 da Carta da OTAN. Poucas pessoas, mesmo em meios especializados, se deram ao trabalho de explicar que esse não é o artigo de defesa coletiva da ameaça, que seria o artigo 5. O artigo 4 apenas prevê consultas dentro dos membros quando uma das partes se sentir ameaçada. Em outras palavras, consultar os EUA.

Naquele momento, a Rússia negava a responsabilidade e afirmava que se tratava de uma provocação ucraniana. Era possível especular que teria sido um míssil russo atingindo um alvo polonês deliberadamente? Era. Seria possível afirmar isso? Não. Poderia ter sido um míssil russo, mas de forma acidental? Também. Finalmente, outra possibilidade seria a Polônia ter sofrido danos colaterais da interceptação de mísseis russos pelos ucranianos.

Semanas antes, um míssil russo atingiu Moldova, felizmente sem vítimas fatais. Ele havia sido disparado contra a Ucrânia, foi atingido pelas defesas ucranianas, ao ponto de alterar sua rota, mas sem destruí-lo. Como mencionamos, a Ucrânia era alvo de pesado bombardeio naquele dia, o que tornava essa hipótese ainda mais plausível. Como resposta aos ataques, os ucranianos contam com diversos sistemas antiaéreos para sua defesa.

Segundo o governo da Ucrânia, dos 96 mísseis disparados pelos russos, 77 teriam sido interceptados. Ou seja, mísseis disparados pelos ucranianos também abundavam nos céus do país. Algumas horas depois, Andrzej Duda, presidente da Polônia, discursou afirmando que uma investigação era necessária, que a defesa civil estava de prontidão, pediu calma para a população e afirmou que provavelmente seria um “incidente isolado”. A loucura da “Terceira Guerra Mundial” começava a perder força.

Diretamente de Bali, onde ocorria o G20, Joe Biden, presidente dos EUA, disse para a imprensa que a trajetória do projétil que atingiu a Polônia não apontava que ele teria vindo de território russo. Algumas horas depois veio a confirmação de que o projétil que matou os dois cidadãos poloneses era ucraniano, justamente um míssil antiaéreo que caiu no país vizinho, em um incidente trágico.

Síndrome de Francisco Ferdinando
Talvez a principal lição desse episódio seja o reforço de algo já mencionado na coluna: evitar dar ouvidos para os que sofrem de Síndrome de Francisco Ferdinando. Infelizmente, em tempos “caça cliques”, acabam ganhando muito alcance. O termo, criado aqui na coluna, se refere aos que veem o início de um conflito mundial em todo e qualquer incidente internacional, parece que até desejam, ignorando as lições da História.

Uma dessas lições é, justamente, que o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, não foi o estopim imediato, nem a única causa, talvez nem tenha sido a causa principal, do início da Grande Guerra. Foi sim o gatilho de uma crise que durou um mês, entre o assassinato e a primeira declaração de guerra. Uma das várias crises que fazem parte da complexa trama de fatores que, acumuladas por décadas, contribuíram para a eclosão da Grande Guerra, longe de ser apenas o assassinato do arquiduque.

Uma excelente obra recente aborda como essa visão da “síndrome de Francisco Ferdinando” é apenas simbólica, Os Sonâmbulos, de Christopher Clark, em que ele analisa como a Europa caminhou para a guerra no mês que separa o atentado do conflito. Também não podemos esquecer da grande diferença daquele mundo para o de hoje, o risco de um conflito nuclear. Com todo o respeito às vítimas e seus familiares, o mundo não vai correr o risco de uma hecatombe por causa de dois agricultores mortos em um incidente.

O estudo da Guerra Fria permite lembrarmos que dificilmente um míssil desgarrado vai ser o gatilho da Terceira Guerra Mundial. Resta, entretanto, outra questão: de onde veio a suspeita de que teria sido um míssil russo? Começou em uma agência de notícias dos EUA, a Associated Press. No último dia 21, a agência demitiu o repórter responsável, James LaPorta, ex-fuzileiro naval e baseado nos EUA.

Ele teria recebido a informação de uma “fonte anônima” de inteligência e mensagens da comunicação entre o repórter e editores mostram que eles deliberaram por dez minutos antes de decidir publicar a versão sensacionalista dos fatos por uma agência de credibilidade e autoridade. O repórter recebeu desinformação e não checou? Ânsia pelo furo de reportagem? O repórter teria até inventado? No final das contas, o funcionário mais baixo na cadeia alimentar que pagou pelo erro.

Países não iriam à guerra pelo que uma agência de notícias publicou, mas o erro certamente contribuiu para o alarmismo. Curiosamente, o alarmismo disparado por uma agência de grande reputação beneficiou com audiência os veículos e articulistas de qualidade duvidosa, em um círculo vicioso bastante pertinente aos debates atuais sobre o papel da imprensa e sua relação com redes sociais. Algumas coisas, entretanto, não mudam. Prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém, na esperança de que nos livremos da Síndrome de Francisco Ferdinando.

Guerra espacial
Como a Guerra na Ucrânia se torna espacial e incentiva novos investimentos em satélites por todo o mundo

Por
Mariana Braga – Gazeta do Povo


Lançamento de satélites Starlink em 2020.| Foto: Reprodução/Youtube Nasa

A Guerra na Ucrânia vai muito além de terra, céu e mar. Os conflitos estão no espaço e tendem a acontecer cada vez mais a quilômetros de distância do solo. Além disso, a invasão russa incentivou outros países a investirem ainda mais nesse setor, que está na base das disputas no Leste Europeu.

Os ucranianos só não perderam totalmente a conexão com a internet, por exemplo, devido ao sistema Starlink, da Space X do bilionário Elon Musk, tendo em vista que a quase totalidade da infraestrutura tecnológica do país foi bombardeada.

“Starlink é o único sistema de comunicação que continua a funcionar. Todos os outros estão mortos”, tuitou o bilionário em meados de outubro.

Em termos de defesa, o Starlink permite que as forças ucranianas calculem a trajetória de seus mísseis e geolocalizem seus alvos. Por isso, Musk também publicou que “a Rússia está tentando destruir o Starlink”.

Existe uma diferença substancial entre o sistema da Space X e outros espalhados pelo mundo. Tradicionalmente, satélites de comunicação estavam a mais de 20 mil km de distância, além do alcance dos mísseis. Mas a SpaceX mudou essa ordem. Hoje, a constelação da empresa de Elon Musk evolui em órbita baixa, até 550 km de altura, ou 60 vezes mais baixa que os satélites convencionais. A vantagem é uma latência mais curta (tempo que os dados levam para chegar ao destinatário). A desvantagem é uma exposição maior aos mísseis vindos do solo.

Além de ter o Starlink, a inteligência ucraniana está em contato direto com especialistas de empresas privadas americanas de tecnologia espacial, como a Maxar Technologies, Planet Labs e BlackSky. As imagens permitem identificar o avanço das tropas e do equipamento militar do adversário, bem como registrar os abusos russos.

Em Mariupol, por exemplo, poucas horas após o bombardeio de um teatro que abrigava civis, a Maxar havia publicado instantaneamente uma imagem mostrando que a palavra “crianças” estava escrita no chão em enormes letras brancas, para sinalizar a presença de menores a possíveis pilotos de caça.

Movimentação mundial 

Esse cenário de corrida espacial fez outros países apertarem o passo nos investimentos no setor, que já estavam em crescimento.

Nesta semana, os 22 ministros dos países membros da Agência Espacial Europeia (ESA) se encontraram para definir o orçamento da instituição para os próximos três anos e dividi-lo entre os diferentes programas. Para o período 2023-2025, a ESA pede aos seus membros 18,5 mil milhões de euros, um aumento de 25% em relação ao período 2020-2022.

Um salto nunca visto antes. “É necessário para permanecer na corrida com os americanos e os chineses, cujos meios estão aumentando nesse ritmo”, garantiu o gerente-geral Josef Aschbacher. O desenvolvimento do foguete Ariane 6 é uma das metas para a independência espacial europeia.

Mas não é de hoje que a Europa está de olho nas disputas espaciais. Ainda em 2018, a então ministra das Forças Armadas da França, Florence Parly, denunciou a atividade de um satélite russo que se aproximou muito de um satélite militar franco-italiano para ouvir suas transmissões. A França, então, criou um comando específico em 2019 e inflou seu orçamento em 30% em sua última lei de programação militar, elevando-o para 600 milhões de euros anuais.

Já os chineses dobraram seu orçamento em dez anos para se preparar para uma guerra espacial, elevando os gastos para mais de US$ 3 bilhões.

O Reino Unido, por sua vez, formalizou com o ex-premiê Boris Johnson sua ambição de se tornar um ator espacial “significativo” até a década de 2030.

Quanto à Itália, o país desenvolveu o sistema de observação mais poderoso da Europa com o Cosmo-SkyMed.

E os americanos lançaram em 2019 com Donald Trump um comando espacial militar, o Spacecon, planejando um “exército espacial”. “Somos os melhores do mundo no espaço hoje, mas nosso nível de superioridade está diminuindo”, declarou o general John Raymond, nomeado chefe da Spacecom, na ocasião. “Queremos nos mover rapidamente e ficar à frente.”

Com a invasão russa, a preocupação mundial cresceu. Ainda no início de março, o Ministério das Forças Armadas da França já estava alertando para o perigo de propagação do conflito a dezenas de milhares de quilômetros da Terra. “O que imaginávamos está chegando”, alertou o general Michel Friedling, chefe do Comando Espacial Francês.

“Estamos em constante vigilância e em conexão com nossos parceiros e aliados sobre o que pode acontecer no espaço, que ainda é uma zona cinzenta”, concluiu.

O que está acontecendo e o que pode acontecer 
Em fevereiro, um dia antes da invasão da Ucrânia, milhares de europeus se viram sem conexão de internet. O satélite Viasat tinha sido alvo de um ciberataque, privando o acesso às comunicações por satélite em determinadas zonas da Europa e em particular na Ucrânia. Para o general francês Friedling, esse incidente foi indiscutivelmente causado por um ataque russo.

Ao mesmo tempo, hackers afiliados ao Anonymous (movimento de hackers anônimos) alegaram ter colocado toda a Roscosmos, a agência espacial russa, fora de serviço para que Moscou “perdesse o controle de seus satélites espiões”.

Negando a informação, o diretor da Roscosmos, Dmitry Rogozin, lembrou que “desativar grupos de satélites de qualquer país geralmente constitui um casus belli, ou seja, um motivo para ir à guerra”. Por sua vez, Elon Musk, CEO da SpaceX, disse que era regularmente alvo de tais ataques e teve que gastar recursos significativos para repeli-los.

Mas guerra espacial reserva muitos outros métodos de ataque. “Desde o rompimento de um satélite até sua destruição física, há uma série de ações possíveis”, observou Xavier Pasco, diretor do FRS, ao jornal Le Monde.

“É impossível para a Rússia destruir completamente a rede”, concluiu Paul Wohrer, pesquisador de espaço da Fundação para Pesquisa Estratégica (FRS) ao jornal francês Le Figaro. Ele ainda alertou para o risco, a longo prazo, da “síndrome de Kessler”: a chegada de inúmeros detritos poluindo o espaço. “Seria um desastre ecológico e um grande problema para o uso do espaço nos próximos anos”, alertou o especialista, segundo o qual “a Rússia se exporia a graves consequências internacionais ao assumir tal responsabilidade”.

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/como-a-guerra-na-ucrania-se-torna-espacial-e-incentiva-novos-investimentos-em-satelites-por-todo-o-mundo/
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