Artigo
Por
Jonas Rabinovitch


| Foto: Divulgação/TRE

Tive o privilégio de trabalhar como responsável pela área de inovação, governo digital e políticas públicas da Organização das Nações Unidas em Nova York por muitos anos. Nessa função fui convidado para visitar países tão diversos como Butão, Fiji, Iran, Laos, Malásia, Panamá, entre outros, para orientar suas políticas digitais, inclusive aspectos relacionados com a votação eletrônica.

Li o chamado Relatório das Forças Armadas, feito pela equipe de fiscalização do sistema eletrônico de votação, estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) conforme exigido pela Constituição. Nunca vi um processo de verificação eleitoral tão absurdo. Segundo o próprio TSE, o programa e seus algoritmos contêm cerca de 17 milhões de linhas de programação. Mas o TSE só autorizou a entrada da equipe verificadora com papel e lápis na sala de computação. Como fiscalizar a segurança de um sistema tão complexo apenas com lápis e papel, sem uma simulação digital?

Sinceramente, tenho vergonha de dizer que venho do país dos manés. E somos pelo menos 58 milhões de manés sendo acusados de conspirar contra a democracia simplesmente por questionar as urnas eletrônicas.

Segundo o TSE, o sistema existente na sala de computação está conectado a outras “bibliotecas de software” desenvolvidas por terceiros em computadores externos, os quais tampouco puderam ser acessados pela equipe de verificação. O TSE usou cerca de 500 mil urnas no país com seis modelos diferentes conectados a um sistema centralizado, mas não permitiu testes digitais dinâmicos de todo o sistema e nem forneceu um diagrama sistêmico.

O TSE tampouco permitiu acesso ao controle de versões dos códigos-fonte utilizados, tendo autorizado apenas análises estáticas.  É impossível testar efetivamente a segurança de um sistema dinâmico apenas com ferramentas estáticas.  Por esse mesmo motivo, há várias décadas o computador já substituiu lápis e papel na realização de cálculos complexos. Simulações do sistema de votação foram feitas exclusivamente por técnicos do TSE, enquanto a equipe fiscalizadora só foi autorizada a acompanhar pelo monitor de vídeo em outra sala.

Todos os programas de computação sofrem alterações, aperfeiçoamentos e atualizações – por isso sempre há várias versões. Isso é normal.  Mas não é normal que uma equipe de fiscalização não tenha tido acesso ao histórico das várias versões do programa para saber quem mexeu nele, quando e como. O governo, o Ministério de Defesa e as Forças Armadas nem poderiam afirmar que houve fraude porque foram proibidos de ter acesso aos meios necessários para testar o sistema de votação como um sistema. É como se uma equipe de relojoeiros suíços fosse convidada para testar um novo relógio olhando apenas para os ponteiros. Foram proibidos de abrir o relógio, analisar suas engrenagens, entender seus mecanismos, realizar testes de resistência a água e pressão, enfim, a tarefa é impossível.

Resumindo: sistemas centralizados de votação digital usando máquinas de votar são ilegais em quase todos os países. Os riscos são maiores que os benefícios, por mais rápido que saiam os resultados. No mínimo é válido perguntar, a bem da democracia: quantos riscos são toleráveis em nome da rapidez do resultado? Por muito menos as eleições em Berlim foram recentemente anuladas e uma nova eleição foi agendada.


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Quando conversei com o chefe de governo digital da Estônia ele não deixou dúvidas: “máquinas de votar não são confiáveis quando conectados a um sistema digital centralizado sem rigorosa simulação em tempo real de todos os elementos do sistema”. No Brasil, tentativas político-administrativas para revisão e esclarecimentos sobre o processo eleitoral foram sumariamente indeferidas.

A frase do ministro Barroso do Supremo Tribunal Federal ecoa nos ouvidos da nação: “Perdeu mané, não amola!”.  O psicólogo americano Jeffrey Huntsinger, da Univesidade de Chicago, demonstrou que a raiva serve como uma espécie de válvula de pressão, revelando o que as pessoas realmente sentem e pensam.  Segundo ele, a raiva pode revelar a verdadeira correspondência entre atitudes implícitas e explícitas em qualquer pessoa.

Sinceramente, tenho vergonha de dizer que venho do país dos manés. E somos pelo menos 58 milhões de manés sendo acusados de conspirar contra a democracia simplesmente por questionar as urnas eletrônicas: um assunto já perguntado, debatido, analisado, resolvido e abandonado pelos países mais desenvolvidos.

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com experiência em inovação, governo digital e gestão pública.
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