Manifestações

Por
Leonardo Coutinho


Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em Brasília protestam contra o resultado da eleição| Foto: EFE/Joédson Alves

China, 1989. Milhares de estudantes, professores universitários e o que poderia se chamar elite intelectual que emergia com ideais liberais depois de uma década de abertura econômica iniciaram uma série de manifestações pedindo, além da abertura econômica, maior liberdade política e um governo mais democrático. Depois de quase três meses de movimento – que foi marcado por greves de fome e acampamentos em praça pública em pelo menos 400 cidades –, o regime simplesmente mandou passar tanques por cima da garotada. O número de mortos é uma incógnita e a quantidade de presos e desaparecidos é da casa dos milhares. O Partido Comunista Chinês, que enfrentava um dilema interno entre relaxar ou não relaxar a tirania, incluindo um pouquinho de liberdade no pacote de reformas, deu meia volta. Sob o comando do ultra-autoritário Jiang Zemin, que morreu no mês passado, a China acenava para o mundo, mostrando sua disposição de se “ocidentalizar” fazendo negócios, enquanto internamente marchava para um modelo de repressão que viria a superar o que alguns conhecem como perseguição política. O regime montou um extenso, complexo e eficiente sistema de controle social. Esse foi o maior resultado das manifestações na China.

Irã, 1999. Quase ninguém se lembra ou sequer se deu conta. Mas, por cinco dias, uma rebelião de estudantes iranianos paralisou a capital Teerã. Sob as ordens dos aiatolás, a Guarda Revolucionária baixou o sarrafo em todo mundo. Centenas de pessoas foram feridas, 1,5 mil foram presas. O número de mortos é um mistério. Foi um soluço que o regime teocrático que havia recém completado 20 anos sofreu. Os estudantes não aceitavam o endurecimento do regime, que mandou fechar um jornal depois que a publicação revelou uma rede oficial de perseguição a opositores. Como se isso fosse uma grande novidade em regimes totalitários como o do Irã. A brutalidade do regime contra os estudantes deflagrou uma onda de protestos nas principais cidades do país. O aiatolá Ali Khamenei colocou a culpa na CIA e dobrou a aposta repressiva. Além de abafar os protestos, mandou prender os líderes dos protestos. Acusados de serem “inimigos de Deus”, os líderes estudantis foram julgados em sessões espetáculo para servir de exemplo. O resultado: a resposta vem a seguir.

Irã, 2009. Candidato à reeleição, o então presidente Mahmoud Ahmadinejad ganhou a disputa em um processo repleto de suspeitas de fraude. Os três candidatos derrotados alegaram manipulação dos resultados. Dez anos depois de o Irã ter enfrentado a primeira onda de protestos de rua, com os estudantes massacrados em 1999, o país virou palco da maior onda de protestos de sua história. Pode-se dizer que com um lapso de dez anos, os protestos eram uma continuação dos eventos iniciados na Universidade de Teerã. Tudo parecia concorrer para a derrocada do regime. Milhares de pessoas ao redor do mundo mudaram as configurações de suas contas de Twitter e Facebook indicando como localização o Irã, como forma de confundir a censura e aumentar a adesão aos protestos. O Twitter suspendeu um update global de seu software para evitar que ocorresse algum tipo de bug que deixasse os manifestantes sem acesso à plataforma. Contribuição que levou muitos a pedir para o Twitter o Prêmio Nobel da Paz por seu papel na crise do Irã. Assim como dez anos antes, o regime não amoleceu. Mandou mais de 2,5 mil pessoas para a cadeia, oficialmente matou 15 e endureceu ainda mais a repressão contra a oposição.

Brasil, 2013. Manifestações conta o aumento no valor das tarifas de ônibus em São Paulo foram reprimidas com violência depois que hordas de black blocs promoveram quebradeiras pelo centro da capital paulista. A brutalidade foi o gatilho que fez com que os protestos se alastrassem pelo Brasil. E os centavos que estavam na origem do movimento se perderam em uma extensa pauta de reivindicações, que iam desde o fim da corrupção e melhoria da educação e saúde até contra a Copa do Mundo, que ocorreria no Brasil no ano seguinte, e a Olimpíada do Rio em 2016. Ao invés de estádios, o pessoal pedia hospital e escola. Ao melhor estilo “seu pedido é uma ordem”, apenas 15 dias depois da primeira passeata, a presidente Dilma Rousseff tirou da cartola o programa Mais Médicos. Ou seja, espertamente, Dilma e o PT aproveitaram-se dos protestos como justificativa para colocar em prática um plano que estava na gaveta desde o ano anterior de importar médicos cubanos em regime análogo à escravidão como pretexto para enviar bilhões de reais para Cuba. Grande conquista! O tempo passou, Dilma quebrou o Brasil para se reeleger no ano seguinte e o país era pilhado por um esquema de corrupção de proporções titânicas que os manifestantes de 2013 só viriam a conhecer anos depois com a Lava-Jato. O resultado: dez anos depois, o Brasil voltou à estaca zero.

Venezuela, 2017. Naquele ano, foram registradas 9.787 manifestações nas ruas do país. Uma média de 27 por dia. Sendo que quase 6 mil se concentraram entre os meses de maio e julho daquele ano. Cerca de 6 mil pessoas foram presas e seguem até hoje na cadeia. Mais de 15 mil foram feridas e 163 foram assassinadas pelas forças oficiais do regime ou pelas milícias bolivarianas que dão suporte ao regime. Nicolás Maduro parecia estar por um fio. Até um golpe militar chegou a ser tramado. Mas eis que o regime contra-atacou. Prendeu os golpistas e iniciou uma repressão brutal. Os protestos minguaram na mesma proporção que o país se tornou praticamente inabitável, na crise humanitária mais profunda do hemisfério. Maduro não só resistiu como foi capaz de se aproveitar dos protestos para varrer do mapa quem se apresentava como obstáculos ao regime e suas máfias.

Bolívia, 2019. Parecia que o povo tinha colocado o cocaleiro Evo Morales para correr. Depois da descoberta de uma fraude nas eleições daquele ano, milhares de bolivianos foram às ruas por dias para exigir novas eleições, a renúncia de Morales e a retomada da democracia. Execrado e com a imagem arranhada no mundo, o líder cocaleiro fez uma jogada de mestre. Empurrou a crise para uma situação limite. Renunciou de forma a parecer ter sido vítima de um golpe e fugiu do país. Manipulou com seus apoiadores na cadeia de sucessão do poder, de forma que cada um renunciasse até que o país caísse exatamente na mão da oposição. Se não fosse assim, a tese do golpe não colaria. Um ano depois, o grupo de Evo Morales voltou por cima, com a eleição de Luis Arce. Além de recuperar o poder e o prestígio, Morales conseguiu mandar para cadeia os opositores.

A lista recente de manifestações que tiveram como retorno o massacre da oposição inclui a Nicarágua e Cuba. Regimes que souberam tirar proveito da confusão para fazer uma limpeza desde dentro. Expurgando aliados críticos e aniquilando a oposição. Os protestos nos dois países serviram como pretexto para um aumento da perseguição política e endurecimento dos regimes.

Manifestações são superestimadas. Seus efeitos diretos, em geral, são mais nocivos que benéficos a curto prazo. Em ditaduras, eles são um excelente pretexto para os regimes se fortalecerem. Em democracias, são uma bela ajuda para os governantes se ajustarem para salvar suas cabeças, manter-se nos cargos ou implementar políticas. As mudanças quase nunca vêm das ruas. O quase merece destaque, pois para toda regra há exceções.

O que as manifestações parecem ter de efeito é promover a participação política. O envolvimento cidadão pode fomentar medidas e ações que possam ter influências em outros processos, como eleições (em democracias, apenas) onde candidatos ou movimentos que são associados às demandas e aspirações têm a chance de serem eleitos e de promover mudanças reais. Em democracias e (dessa vez) ditaduras, os protestos são um instrumento útil para quem realmente manda e pode mudar as coisas valendo-se da “desculpa” da vontade popular. Projetos de lei, mudanças constitucionais e até Constituições inteiras nascem assim.

Desde o final do segundo turno das eleições, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro estão nas ruas realizando uma série de manifestações contra o resultado das urnas. Inventaram até um tal “Lula não sobe a rampa”, sugerindo que evitarão a posse do presidente eleito. Qual o resultado prático desse tipo de movimento, que tem tudo para não chegar a lugar algum, a não ser o de oferecer todos os argumentos para que sejam atropelados pela narrativa da esquerda, que já tatuou na testa de cada um destes a marca de fascista? E se fizerem a besteira de fazer besteira?

Os resultados imediatos dos protestos atuais (esperados por quem está acampando nas portas dos quartéis) são nulos. Aqueles que poderiam um dia ser colhidos em longo prazo ficam cada vez mais distantes a cada dia em que eles insistem em marchar rumo ao abismo. O precipício, ao que parece, está próximo. A terceirização da insanidade para uma massa ressentida e desgovernada não tem como dar certo. Lá vem mais um tópico: Brasil, 2023…


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