Dúvida cruel

Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo


Ei, mãe, olha eu ali no meio!| Foto: Reprodução/ Facebook

Vou começar pelo asterisco. Para minha surpresa, fiquei sabendo que não há consenso de que vivemos sob uma ditadura. Eu digo que sim. Que há perseguição sistemática a um grupo político. Que a Constituição virou letra morta. Que não há separação entre os Poderes. Que a censura prévia é uma praxe. Mas você diz que não. Que talvez não vivamos uma democracia plena, vá lá, mas que o regime ainda é marginalmente democrático. Que há saídas institucionais, embora cada vez mais remotas. Que para ser considerado uma ditadura o regime tem que preencher certos requisitos.

Oquei. A discordância é válida. Mas me permita insistir e dizer que o que temos hoje é uma ditadura camuflada por decisões judiciais arbitrárias, baseadas na vontade, e não nos códigos democraticamente estabelecidos pela Constituição e legislações auxiliares. É uma ditadura por ora tímida, que não se identifica como tal porque, sabe como é, pega mal com os amigos. Mas que em breve, profetizo, perderá de vez os pudores e se desnudará diante de todos, expondo suas nojentas pelancas tirânicas. Me permita ir além e dizer que, se tem cara de ditadura, cheiro de ditadura, gosto de ditadura e soa como ditadura, é porque não pode ser outra coisa que não… ditadura.

Dito isso, começo a desenvolver e aprofundar a pergunta proposta no título falando de um ótimo filme: “Uma Vida Oculta”. Ele conta a história de Franz Jägerstätter, um homem comum executado pelo regime nazista por se recusar a prestar juramento de lealdade a Hitler. Lá pelas tantas do filme, um dos personagens diz (cito de cabeça) que as pessoas gostam muito de pensar que, se tivessem de escolher entre Barrabás e Cristo, escolheriam Cristo. Mas a verdade é que prefeririam e preferem cotidianamente Barrabás a Cristo.

Na versão secular dessa proposição filosófica, por assim dizer, somos levados a nos imaginar na Alemanha, por volta de 1938. Ao nosso redor, todo mundo estende o braço e grita “Heil, Hitler!”. Como você agiria em meio a esse frenesi político todo? Se juntaria à turba e encheria os pulmões para declarar amor pelo Füher ou arriscaria a vida lutando pela liberdade? Acho que não preciso dizer aqui que a maioria das pessoas se apressa em declarar que jamais!, em hipótese alguma!, de jeito nenhum! teria sido nazista. E, no entanto, o nazismo foi um movimento de massa e arrastou multidões.

Tupiniquiníssima
Há ainda uma terceira versão desse “dilema”. Uma versão verde e amarela. Tupiniquiníssima! Nela, você entra na máquina do tempo e é transportado diretamente para a Ditadura Militar em seu período mais repressivo. E aí? Você vai dar de ombros e seguir com a sua vida, como fez a maioria dos brasileiros, ou vai lutar contra os milicos, por mais que as vítimas também lutassem para implantar uma ditadura no Brasil? A maioria das pessoas gosta de se imaginar numa passeata, cantando “Pra não dizer que não falei das flores” ao lado do próprio Geraldo Vandré, quando não fazendo parte de uma célula do Movimento Revolucionário Oito de Outubro.

No entanto, são essas mesmas pessoas (ou seus filhos e netos) que agora, diante de uma ditadura que se insinua toda melíflua por entre a Esplanada dos Ministérios, sussurrando nos ouvidos dos incautos palavras como “democracia” e “civilização”, não hesitam em criar para si (e para os demais) as justificativas mais estapafúrdias a fim de explicar por que aderem à evidente tirania de Alexandre de Moraes.

E pior: fazem isso repetindo os clichês da publicidade oficial, reproduzida à exaustão pela imprensa cúmplice. Se ontem os comunistas da propaganda verde-oliva comiam criancinha, hoje os “direitistas” são perigosos terroristas. Se ontem Cristo pregava a incômoda Boa Nova, hoje os jornalistas inimigos disseminam “desinformação capaz de abalar a confiança nas instituições”. Se ontem o judeu era rato, hoje o bolsonarista é gado.

Essas, porém, são as justificativas mais “sofisticadas”, usadas para esconder o que no fundo motiva as pessoas a aderirem a ditaduras ou quaisquer outros regimes de exceção: a inveja, o ressentimento, o desejo de vingança, o inconfessável prazerzinho sádico e o ódio pelo divergente. E, no caso de Cristo, a escolherem Barrabás: a incapacidade de vislumbrar, se assustar e principalmente resistir to-dos-os-di-as à porção má que nos habita.


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