Putz
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo
Um terrorista? Um golpista? Um patriota? Um idiota? Dependendo de quem vê, o personagem dessa foto pode ser qualquer coisa.| Foto: EFE/ Andre Borges
Para reagirmos à realidade, antes de qualquer coisa precisamos identificar o que se desenrola à nossa frente. E nem tudo é tão óbvio quanto parece. Ou melhor, nada é tão simples quanto os militantes, sobretudo a imprensa petista que agora está por cima da carne seca, fazem parecer.
Peguemos, por exemplo, os acontecimentos do fatídico 8 de janeiro de 2023. Uns dizem que foram graves atos terroristas semelhantes às ações do ISIS ou, para meus leitores mais velhos, do ETA e do IRA. Outros apostam em tentativa de golpe de Estado ou no conceito sutil de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”. Há ainda uma tese que me parece natimorta: a de que tudo não passou de uma conspiração de esquerda. Por fim, há os que atribuem o que aconteceu naquele domingo a uma revolta estúpida que, por algum motivo, encontrou na depredação do Congresso seu momento de catarse coletiva. Sou desses.
Atos terroristas
A esquerda tem certeza de que foram atos terroristas. Aliás, tinha certeza disso antes mesmo de a primeira janela ser quebrada. Afinal, o simples fato de eu discordar dessa idolatria toda em torno das sacrossantas instituições “democráticas” já bastaria para me transformar no Osama bin Laden das araucárias.
Talvez a esquerda aja assim porque seja necessário um terrorista para reconhecer outro terrorista – como diz aquela expressão que só fica boa em inglês (it needs one to know one). É assim, como atos terroristas, que a esquerda nomeia essa realidade a fim de justificar uma reação a meu ver exagerada, confinando idosos e crianças num abrigo improvisado que veste bem o apelido de lulag, prendendo autoridades por desapreço ideológico e, agora dinamitando uma cláusula pétrea da Constituição, a que garante o direito à manifestação pacífica.
Mas atos terroristas pressupõem várias coisas que faltam ao episódio de domingo. Uma liderança, por exemplo. Uma causa concreta. Ameaças. Mortos. E uma organização capaz de clamar para si a autoria do atentado.
Quando um homem-bomba do ISIS cometia um atentado terrorista, por exemplo, ele recebia instruções claras da organização. Ele tinha um ou vários líderes. A causa era o domínio islâmico ou algo assim. A ação era antecedida por várias ameaças e os mortos eram muitos – daí o nome “terror”. E o ISIS corria para a Internet a fim de se dizer responsável pela carnificina.
Tirando o homem-bomba e as dezenas de mortos, os mesmos pressupostos se aplicam às ações do MST, cujos membros invadem e depredam propriedades rurais, têm como causa declarada o “fim dos latifúndios”, e fazem questão de abrir a bandeirona vermelha do movimento para deixar claro do que são capazes.
Investigue aí a sua consciência para ver se esses pressupostos se aplicam aos vândalos de domingo. Reveja as imagens, repare bem nas expressões, ria do ar ridiculamente heroico dos patriotas, xingue-os de “patriotários”, se for o caso. Mas… terroristas?
Golpe de Estado
Tenho sérias dificuldades para entender os incidentes do dia 8 de janeiro de 2023 como uma tentativa de golpe de Estado. Se bem que as más línguas dizem que tenho sérias dificuldades para entender qualquer coisa, quanto mais o complexo cenário político brasileiro.
Que seja. O fato é que invasão e depredação de prédios públicos não são exatamente uma novidade no Brasil. Em 2013, quando esquerda e direita sem perceber se uniram naquelas mega manifestações que, à época, evidenciavam “o amadurecimento da democracia”, o Congresso foi invadido. E todo mundo achou lindo.
Antes de ser expulsa da presidência, Dilma Roulsseff convocou os camaradas dos movimentos sociais para um ato de resistência dentro do Palácio do Planalto. E nem por isso foi chamada de golpista ou contragolpista. Em 2017, a sede do Ministério da Agricultura em Brasília foi incendiada. Se alguém falou em golpe de Estado, falou bem baixinho, porque eu não ouvi.
Além disso, que golpe de Estado é esse que se dá sem liderança, sem armas, sem apoio da opinião pública e sem um plano para o dia seguinte? Sem a menor chance de sucesso?! E ainda por cima num domingo! Se foi mesmo uma tentativa de golpe de Estado para devolver ao poder a Jair Bolsonaro (que nessa fantasia aí chegaria num cavalo branco alado, ao som de harpas tocando marchas militares, etc.), foi o golpe de Estado mais desastrado da história.
E aqui até concedo que o bolsonarismo, em alguns bolsões (sem trocadilho), adquiriu mesmo certo tom messiânico que inflava para além do razoável o poder político de um personagem que fugiu do país, abandonando revolucionários de bengala à própria sorte. Mas dizer que a barafunda foi uma tentativa de golpe de Estado é um exagero. Na boa, e com todo o respeito, o pessoal não tem nem inteligência para isso.
Abolição violenta do EDD
A lei brasileira tem certas sutilezas que não fazem nenhum sentido na vida real. Exemplo disso é a existência do crime de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” – outra explicação possível para o que se viu em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. Posso estar enganado, mas acredito que, neste caso, o espírito da lei tem a ver com uma revolução tradicional, tipo a bolchevique. Isto é, uma revolução que culmine com a morte das mais altas autoridades do Estado.
Por falar nisso, vou aproveitar o ensejo para perguntar por que não existe o crime de abolição não-violenta do Estado Democrático de Direito. Ou seja, o golpe sorrateiro, o golpe na surdina, o golpe na maciota, o golpe dos conchavos, o golpe come-quieto. Fica a dica para os nossos nobres parlamentares de oposição.
Reichstag
Ainda no domingo, houve uma tentativa de fazer prevalecer a narrativa de que os tumultos em Brasília tinham sido obra apenas de infiltrados esquerdistas que tentavam reproduzir no Brasil a mesma comoção causada pelo incêndio do Reichstag, o parlamento alemão, em 1933. O incêndio serviu de pretexto para Hitler esmagar qualquer oposição ao regime nazista e consolidar seu poder absoluto.
A narrativa de uma conspiração esquerdista, contudo, não para em pé. Digo, não duvido nada que tenha havido ali um ou outro infiltrado, de piromaníacos a jovens entediados. Mas seria desonesto isentar de responsabilidade o grosso da multidão que rompeu as barreiras e fez o que fez.
Este, aliás, é um fenômeno da Era da Informação que precisa ser observado com mais atenção: o desejo popular de viver ou reencenar um Grande Momento Histórico, de estar lutando constantemente contra evidentes conspirações, de ser o detentor de informações privilegiadíssimas que causarão sempre transformações drásticas e definitivas no mundo. Tic, tac.
Balbúrdia
Para mim, a explicação mais simples para o 8 de janeiro de 2023 é também a mais plausível. Os manifestantes que promoveram o quebra-quebra em Brasília agiram movidos pelo velho espírito da balbúrdia. Pela ideia de que o caos antecede necessariamente o restabelecimento da ordem. No caso concreto, talvez acreditassem que a mera existência de uma massa descontente fosse o bastante para sensibilizar o coração de gelo do ministro Alexandre de Moraes.
Isso torna os atos menos condenáveis? De jeito nenhum! Porque a balbúrdia (a confusão, o alarido, a baderna, o alvoroço, a desordem, a azáfama, a barafunda, o distúrbio, o escarcéu, a grita, o quebra-quebra, o tumulto, a revolta) é, antes de mais nada, burra e ineficiente. Mais do que isso, a balbúrdia (etc.) tira da indignação justa qualquer simpatia que a opinião pública possa vir a nutrir por ela. Afinal, ninguém gosta de ser confundido com vândalos.
Foi isso o que se viu no domingo: a expressão catártica e estúpida de uma indignação que até então contava com a solidariedade de quem a considerava justa. Agora é aguentar as consequências. Ou talvez a punição dos “deuses da democracia”, para usar a infame expressão do ministro Luís Roberto Barroso.
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