Dia 8 de janeiro
Por
Deltan Dallagnol – Gazeta do Povo
| Foto: EFE/ Andre Borges.
A invasão dos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro foi um erro crasso. Além de configurar crimes graves a atentar contra a democracia, bens e valores essenciais da sociedade, fortaleceu o governo que pretendia enfraquecer.
De fato, a invasão caracterizou uma série de crimes graves com múltiplos efeitos danosos e no centro da preocupação está a preservação e a força da nossa democracia. Nessa linha parece estar a opinião da grande maioria dos brasileiros, os 75,8% que discordam da invasão segundo pesquisa da Atlas Intel divulgada na última terça, feita com 2.200 pessoas. Dentre elas, 73,5% são acertadamente contra uma ditadura.
Todos perdemos ainda com o vandalismo contra os imóveis e móveis e, de modo incalculável, com a destruição do patrimônio histórico, artístico e cultural. Foram depredados, por exemplo, uma tela de Di Cavalcanti, um retrato de José Bonifácio, um tapete que pertenceu à Princesa Isabel, um relógio recebido da corte de Luís XIV pela família real portuguesa e várias esculturas. Depredaram nossa história enquanto nação.
Todos perdemos, mas é curioso que a invasão prejudica os próprios interesses nutridos pelos invasores. Se o objetivo do ato era derrubar ou enfraquecer o governo do PT, a invasão o fortalece em muitos aspectos. Foi um erro “crasso”, para usar a expressão que remete aos erros praticados por Marco Licínio Crasso.
Crasso foi um comandante militar e político romano que, na ânsia da glória de conquistar o Império Parta, seguiu por atalhos, cometendo uma série de erros grosseiros de planejamento e estratégia. Os erros conduziram à sua derrota e morte na Batalha de Carras, em 53 a.C., muito embora tivesse um exército numericamente superior.
Se o objetivo do ato era derrubar ou enfraquecer o governo do PT, a invasão o fortalece em muitos aspectos
No dia 8 de janeiro houve similarmente o abandono de uma estratégica segura, a oposição democrática contra retrocessos do governo petista, para atacá-lo com ânsia e desespero, o que só trouxe perda aos opositores de Lula e força aos seus aliados.
De fato, a insurgência dos invasores, expressada de modo criminoso no objetivo e forma, fortalece Lula, que se posicionou nas eleições como elo de união do campo democrático. Chefes dos Poderes se uniram e todos os governadores ou seus representantes, inclusive os opositores, reuniram-se presencialmente para demonstrar união. Ganhou força a narrativa falsa de que os opositores do governo seriam inimigos da democracia.
Outra ironia é o fato de que os governos do PT, agora colocado como “defensor da democracia”, erodiram profundamente a própria democracia, ainda que de modo oculto, mas igualmente grave, canalizando bilhões do governo para influenciar indevidamente as eleições pretéritas em favor de seus candidatos.
Além disso, nos dias anteriores à invasão, vários aspectos relacionados ao governo vinham sendo alvo de cobertura negativa da mídia, por exemplo: as relações até agora inexplicadas da Ministra do Turismo com milicianos; a criação de uma espécie ministério da verdade; perdas bilionárias da bolsa decorrentes de uma política econômica que promete ser desastrosa; e a nomeação de um condenado por desvio de dinheiro como Ministro.
Com a invasão, críticos do governo tentaram chamar a atenção para a gestão desastrada do episódio feita também pelo Ministério da Justiça, já que alertas de risco foram distribuídos para 48 órgãos do governo, em 16 ministérios. Contudo, Lula respirou aliviado: a gravidade do 8 de janeiro fez toda a atenção ser redirecionada para o ataque à democracia.
Esse episódio deu respaldo ainda ao trabalho do ministro Alexandre de Moraes. Ele viu várias de suas ações serem retrospectivamente legitimadas, em maior ou menor grau, como medidas necessárias para proteger a democracia, debaixo do guarda-chuva da tese da democracia militante, em que a restrição de direitos fundamentais se justifica para proteger a própria democracia.
Some-se que a estratégia criminosa da violência e da depredação contra pessoas e o patrimônio público, antes atribuída à esquerda radical, passou a ser uma mácula também da direita radical, que contraditoriamente sempre criticou os métodos ilegais dos movimentos sem terra e dos trabalhadores sem teto, que protagonizaram numerosas ocorrências de quebradeira e depredação do patrimônio público.
Esse episódio deu respaldo ainda ao trabalho do ministro Alexandre de Moraes. Ele viu várias de suas ações serem retrospectivamente legitimadas, em maior ou menor grau, como medidas necessárias para proteger a democracia
Por fim, há uma preocupação disseminada de que o PT implemente uma política econômica desastrosa. A mesma economia que se busca preservar com a oposição ao governo é ameaçada pelo 8 de janeiro, que tinha potencial para colocar o Brasil no rol de países com instabilidade política e social.
Com base num estudo de Alberto Alesina e Nouriel Roubini que avaliou 113 países com instabilidade política (“Political Instability and Economic Growth”), o economista Leo Siqueira afirmou que a instabilidade política prejudica o crescimento econômico e se retroalimenta- – um golpe aumenta o risco de novos golpes. Além disso, segue o economista, a instabilidade reduz o investimento estrangeiro e retira o foco das reformas importantes para o Brasil, como a tributária, a administrativa e a fiscal.
Ao longo dessa semana, eu recebi muitos comentários nas redes sociais de pessoas que, como eu, opuseram-se à invasão, mas que argumentaram que ela foi uma forma de expressar a indignação de parte significativa da sociedade. A pesquisa da Atlas Intel capturou esse sentimento, revelando que 38% dos entrevistados viram a invasão como justificada no todo ou em parte.
Esse considerável número não pode ser ignorado quando se trata da pacificação do país. Dessa forma, é preciso buscar entender quais são os fatos que geram essa indignação e quais valores precisamos reacender em nossa política para que possamos alcançar a pacificação nacional.
No entanto, é preciso reconhecer claramente que a invasão foi criminosa e desastrada nos seus métodos e objetivos. Ainda que a ação alcançasse êxito em despertar uma intervenção militar, ela seria uma quebra de institucionalidade, que caracteriza crimes. Os militares responsáveis não teriam incentivos para reconduzir o país à normalidade democrática debaixo do risco de serem julgados como criminosos. Isso conduziria o país a uma ditadura – e não há ditadura boa no mundo –, contra a qual, como vimos, estão 73,5% dos brasileiros, a grande maioria.
Some-se que uma das críticas mais repetidas contra o PT é, aliás, o seu apoio às ditaduras da Venezuela, Cuba, Nicarágua e China. Nesse aspecto, a investida contra a democracia pelos invasores também parece ser um tiro no próprio pé ou, no mínimo, contraditória.
O único caminho para um país mais justo, próspero e melhor é o da democracia. Como no caso de Crasso, o atalho é o caminho mais curto para nossa derrota coletiva. O caminho da mudança é estreito e ocorre por meio do trabalho, da conscientização, da estratégia, da cidadania, do voto consciente e da perseverança, dentro da lei, e, se for o caso, mudando a lei. E a história mostra que essa mudança é possível.
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