Editorial
Por
Gazeta do Povo
Imagem ilustrativa.| Foto: Marcelo Andrade/Arquivo/Gazeta do Povo
As falas repetidas do presidente Lula contra o teto de gastos públicos, que é um limite imposto por lei sobre o máximo que o governo pode gastar, e os anúncios emitidos pelo próprio presidente e pelo Ministério da Fazenda nos primeiros dias de governo sinalizam que o teto de gastos previsto em lei aprovada na gestão de Michel Temer não será obedecido e, portanto, elevados déficits como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrerão. Entre os economistas teóricos estudiosos dos efeitos dos déficits governamentais sobre o processo inflacionário há divergências quanto o aumento da inflação sempre que há déficit público, especialmente após a crise financeira mundial iniciada em 2007.
É com base nessa divergência teórica que muitos políticos e autoridades econômicas vêm justificando suas decisões de aumentar os gastos e elevar os déficits, adicionando o argumento aparentemente nobre de que, como disse o presidente Lula, não faz sentido controlar gastos enquanto houver pobres no país. De início, vale observar que, se o fato de haver pobres justifica gastos públicos sem limites e sem respeito a qualquer teto, seria o caso de indagar por que as nações não usam seus governos para a fabricação de moeda sem nenhuma limitação, a fim de distribuir diretamente ou via programas sociais a todos os pobres como meio de superar a pobreza.
Enquanto o governo não explicar como pretende elevar gastos e aumentar os déficits sem puxar a economia para baixo, os investimentos e os negócios ficam desaquecidos em função das incertezas e dos riscos.
A polêmica sobre os efeitos inflacionários da emissão descontrolada de moeda – que sempre foi considerada incapaz de eliminar a pobreza e, pelo contrário, piora a situação dos pobres pela inflação – surgiu depois de 2008, quando o governo dos Estados Unidos inundou o país de gastos públicos e aumento da moeda circulante para socorrer o desastre do sistema bancário provocado pela crise financeira. Como a inflação norte-americana não explodiu logo na sequência da descomunal emissão de moeda, ganhou corpo a chamada “Teoria Monetária Moderna”, cujos adeptos começaram a defender a tese de que o aumento do estoque de moeda circulante não seria inflacionário, logo, sem os efeitos deletérios da inflação.
No Brasil, um dos defensores dessa teoria é o respeitado economista André Lara Resende, um dos formuladores do bem-sucedido Plano Real e que goza de prestígio nos círculos acadêmicos nacionais e internacionais. Em seu livro Senso e Contrassenso – Por uma economia não dogmática (2020), Lara Resende afirma textualmente que, após os anos 1980, o confronto dos postulados da teoria econômica com a experiência histórica mostra o descompasso entre a realidade e o arcabouço teórico que sustenta as políticas públicas. Ele argumenta que o colapso financeiro internacional resultado da crise de 2008 deixou claro que o pensamento econômico dominante necessita ser reformulado a partir de suas bases mais elementares.
Se o governo pretende aumentar gastos todos os anos a serem pagos com aumento de tributos ou aumento da dívida pública, aí sim é que os efeitos sobre juros e inflação anularão parte do esforço de reduzir a pobreza.
Lara Resende não é o fundador dessa corrente de pensamento, mas é um de seus ilustres adeptos, e afirma que a tese da moeda como mercadoria é apenas um fetiche anacrônico que faz grande parte dos países democráticos adotar um entendimento equivocado sobre a importância da disciplina fiscal e orçamentária. Ou seja, a busca pelo equilíbrio fiscal a qualquer custo e em qualquer circunstância seria um dos dogmas da política econômica dominante e isso tem obstruído uma discussão racional sobre o papel dos investimentos públicos e das iniciativas sociais na criação de riqueza e bem-estar social.
Talvez a expressão-chave nessa tese seja “equilíbrio fiscal a qualquer custo e em qualquer circunstância”. Isto é, até o mais renitente teórico da economia sabe que em circunstâncias especiais, como uma tragédia natural (caso de um terremoto, um tsunami ou uma pandemia) ou tragédia social (caso de grave depressão, como a ocorrida nos anos 1930), o aumento de gastos públicos em investimentos e programas sociais financiado com expansão da moeda circulante é perfeitamente defensável. O problema muda de lógica quando governos estouram os orçamentos públicos, gastam sem limite nenhum inclusive quando a economia está relativamente aquecida e com poucos fatores de produção ociosos, criando portanto um cenário inflacionário. Nos anos 1930, a defesa por mais gastos públicos pagos com emissão de dinheiro – e não por aumento de tributação nem por emissão de dívida pública – foi proposta por aquele que é considerado o maior economista do século 20, John Maynard Keynes, e aceito pelos maiores estudiosos da relação entre inflação e expansão da moeda circulante.
Naquela grande depressão dos anos 1930, havia ociosidade de mão de obra disponível (o desemprego era gigantesco), grande ociosidade de capital (a quantidade de fábricas e máquinas paradas era descomunal), amplas reservas de recursos naturais não explorados, insuficiência de infraestrutura e, principalmente, deflação. Isto é, ao lado de fatores de produção parados, os preços caíam de forma expressiva fazendo que emissões monetárias não sugeriam a possibilidade o aumento dos preços e estouro dos índices de inflação. No caso da crise financeira mundial que teve seu auge em 2008 e 2009, houve ensaio de uma recessão, porém menos grave que a dos anos 1930, e a inundação de moeda no mercado não foi para investimentos públicos, expansão de infraestrutura e reativação de fábricas ociosas. A essência da emissão de dinheiro destinou-se a socorrer instituições financeiras e frear a onda de inadimplência e falências de bancos e empresas de crédito. Claro que, combatendo a crise financeira, a economia poderia se recuperar e os desastrosos efeitos da recessão seriam evitados.
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Esse problema expõe alguns aspectos: 1) quando se fala em expansão monetária, os efeitos dependem de qual o tamanho dessa emissão em relação ao PIB; 2) a expansão monetária deve ser analisada segundo a circunstância que lhe deu causa, pois, uma coisa é emitir dinheiro para reconstruir uma região devastada por um terremoto, por exemplo, outra coisa é a emissão de dinheiro para aumentar a burocracia estatal, aumentar salários do funcionalismo ou estourar o custeio dos serviços públicos; 3) programas sociais de combate à pobreza são úteis e não fazem a inflação explodir desde que sejam focados, constantes ao longo do tempo, inseridos no orçamento fiscal sem explodir o déficit para níveis estratosféricos; 4) em qual circunstância do processo inflacionário país está inserido, e qual a curva atual de flutuação dos preços e das atividades; 5) qual o grau de ociosidade de estrutura produtiva que possa ser reativada rapidamente para aumentar o PIB a curto prazo (situação essa parecida com a fase pós-pandemia).
A Teoria Monetária Moderna trata exclusivamente do aumento dos gastos públicos e elevação do déficit como proporção do PIB que sejam pagos com emissão monetária, não com aumento de impostos ou aumento de dívida do governo. Em certas circunstâncias, a emissão de moeda e a elevação do meio circulante podem não causar inflação, porém, aumento de déficits públicos todos os anos e em porcentuais altos inevitavelmente provoca inflação e recessão, anulando assim o progresso na luta contra a pobreza. Se o governo pretende aumentar gastos todos os anos a serem pagos com aumento de tributos ou aumento da dívida pública, aí sim é que os efeitos sobre juros e inflação anularão parte do esforço de reduzir a pobreza. De qualquer forma, o mundo não está “comprando” essa moderna teoria monetária a ponto de lhe conferir credibilidade para uso corrente. Assim, enquanto o governo não explicar como pretende elevar gastos e aumentar os déficits sem puxar a economia para baixo, os investimentos e os negócios ficam desaquecidos em função das incertezas e dos riscos.
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